VALTER CAFFER

sábado, 24 de março de 2012

O MIGUELÃO CHEGOU






       M I G U E L Ã O

                                    VALTER CAFFER






   

                                  Essa história não tem por objetivo falar de coisas tristes. Não tem por objetivo enaltecer nem denegrir o personagem central. Vai apenas narrar fatos acontecidos ao longo de nossas vidas, que estão de certa forma atreladas a ele. Não pretende se prender nas dificuldades que o Miguelão às vezes causava às pessoas devido à sua deficiência, nem dos embaraços que muitas vezes era tê-lo dentro de casa.
                                  Quero narrar as coisas alegres, as muitas trapalhadas inconseqüentes nas quais vivia metido, e principalmente trazer à tona o quanto essa pessoa foi importante em nossas infâncias.
                                  Atrelada à história da vida do Miguelão, é inegável que temos também as nossas próprias vidas, a nossa própria história. Falando de nossa formação e de nosso passado. Isso nos permite resgatar muita coisa que aos poucos foram ficando perdidas na memória, e que agora renascem e nos surpreendem com a riqueza desses pequenos momentos de nosso passado.
                                  Longe de estabelecer julgamentos de valores. De separar o certo e o errado, ou de apontar quem acertou ou errou. Quero apenas contar à minha maneira como foi nossa convivência com esse ser humano tão incompreendido, às vezes repudiado por muitos e querido por poucos.
                                  Uma coisa é certa, o Miguelão tinha um enorme coração, que com certeza que carregou dentro dele um pedacinho de cada um de nós.

                                                                                                    Valter Caffer.




                                  Eram duas longas avenidas em forma de cruz, cada qual com aproximadamente 1.000 metros de muita poeira e de muitas histórias. Ao longo dessas avenidas principais, várias outras de menor envergadura compunham o quadrilátero da cidade. Paranapuã. Era o ano de 1.960, a febre do desenvolvimento contagiando a nação, inauguração de Brasília, a capital do progresso, o compromisso do presidente de avançar 50 anos em 5, a chegada das fábricas automobilísticas que faziam despencar em São Paulo todos os dias centenas de famílias cheias de ilusão de um futuro promissor. Enfim tudo naqueles dias era progresso e esperança. Mas alí, em Paranapuã, de meu posto observatório aos 4 ou 5 anos de idade, não parecia estar acontecendo nada diferente, certamente devido nessa idade, não sermos capazes de entender as coisas à nossa volta. As notícias vinham através do rádio com a estridente chamada do repórter Esso, e às vezes até punham as pessoas num certo estado de atenção diante da eloquência dos fatos, mas nada diferente acontecia. As avenidas eram largas e esburacadas, sem luz elétrica, sem água encanada, e serviam para pouca coisa além do interminável jogo de bola que reunia toda a garotada do pacato vilarejo. Aos sábados apenas havia um maior movimento. Os roceiros vinham à vila com suas carroças a fim de beneficiarem o arroz para o mês, e de se proverem das compras nos poucos armazéns de secos e molhados ao longo das duas pobres avenidas, Isso tornava mais perigoso o abandono das crianças pelas ruas,  pois  muitas vezes os animais eram arredios ou mal domados, ou então seus próprios condutores se tornavam perigosos após se embriagarem antes de montá-los na volta ao sítio. Perigo com alguma outra condução era raro. Os poucos carros que passavam por ali não tinham como desenvolver qualquer velocidade diante dos buracos existentes, além disso os próprios motoristas eram muito cautelosos e cuidadosos com seus  carros . Ônibus e caminhões eram  o mais comum por essas estradas poeirentas, aliás não eram bem ônibus no seu atual sentido, eram as folclóricas “jardineiras”, com o motor na parte dianteira, e um grande bagageiro em cima que servia para os passageiros levarem seus pertences, e não raro era ocupado por alguns deles diante da lotação interna do veículo. A primeira jardineira vinha bem cedo. Saía de outros vilarejos vizinhos, como Mesópolis, Populina e Santa Albertina, por volta das 5 ou 6 horas da manhã, e faziam a passagem por Paranapuã, com destino a Jales, que era a cidade mais desenvolvida da região, onde ficavam bancos, cartórios, hospitais, escritórios de contabilidade, etc. Pouco antes do almoço passava a das 10 e meia, depois a das duas e a das quatro da tarde. Simultaneamente à medida que chegavam a Jales, voltavam fazendo ao contrário o mesmo itinerário, passando por Paranapuã a primeira por volta das onze da manhã, depois mais duas ao longo do dia, e finalmente a última por volta das seis da tarde. Essa jardineira das seis vez por outra nos trazia esse personagem que tanto esteve presente em nossa infância. Era a alegria da criançada, a certeza de que a partir daquele momento o tédio embarcava na mesma jardineira para bem longe, e deixava ali uma companhia para nossas mirabolantes peripécias  que agora se multiplicariam todos os dias, sempre com uma nova aventura, tal qual os meninos do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Certamente por sermos crianças muito reprimidas àquele tempo, do ponto de vista ético e moral, encontrávamos ali o antídoto para nossas frustrações, sob a forma de irresponsabilidade e irreverência. 

                                       - O MIGUELÃO CHEGOU !
                                       O vô Marcello colocava as duas mão no alto da cabeça, e apenas balbuciava: nom... nom... nom... nom... nom... A vó, coitada, do alto de sua infinda bondade queria acolher o irmão andarilho e errante, queria ampará-lo, dar-lhe abrigo, lar, atenção, mas diante do desatino do vô, se limitava a  exclamar naquele portunhol primitivo: Ah ! Minho Dió !
A criançada cercava a jardineira, enquanto a velha valise de madeira era retirada do bagageiro. A notícia corria mais rápido que o repórter Esso: -O Miguelão chegou !Dali mesmo, da beira da rua ele começava a espalhar pela vila sua característica gritaria, cumprimentando aos gritos cada morador que avistava pela frente. Os ralos e raros dentes de sua boca, dentre os quais um de ouro, bastante saliente, se exibiam no mais puro e sincero sorriso que qualquer ser humano poderia expressar. Ele ignorava a preocupação das pessoas que o recebiam com certo receio, sabedores dos problemas que o acompanhavam. Vinha sempre cheio de novas histórias para contar. Das peripécias acontecidas em suas últimas andanças pelos lares dos outros parentes, e começava a despejá-las ali mesmo, tão logo tomava contato com as pessoas. Não raro ele antepunha um fato pitoresco qualquer acontecido recentemente ao próprio cumprimento. Ou seja, primeiro narrava a historia depois cumprimentava a pessoa. Era próprio dele não ter uma sequência lógica na vida. O vô Marcello o recebia friamente, sempre achando que voltara muito antes do tempo em que era esperado por aqui novamente:
                           -Má Migué, porque nom ficou mai uns meses em General Sargado ? Tinha que vortá tam depressa ?  E ele bem depressa se justificava: Teu cunhado Zé Pinha. O Zé Pinha me boto pra fora. Quis me bater, tive de vim embora. Aquilo não é homem Marcello, é um bicho.  A vó, embora um pouco receosa, ia aos poucos colocando panos quentes na situação, perguntando de um parente, de outro, da sobrinhada, dos irmãos, dos cunhados, e aos poucos ia acomodando novamente o Miguelão em seu quartinho nos fundos da casa. Ali ele fazia o seu refúgio. Às vezes dormia muito. Ali ele queimava as velas para seus muitos santos devotos, ali tinha sempre à cabeceira seus inúmeros cigarros de palha, seus dentes de alho, folhas de arruda, marcas e marcas de escarros pelo chão e pela parede, e o inseparável vidro de Biotônico Fontoura. Na hora de desfazer a impagável valise de madeira o primeiro desentendimento aparecia. Provavelmente por ter  saído às pressas da casa da outra irmã, trazia as roupas juntadas de qualquer jeito, sujas, faltado peças, e com o tradicional mal cheiro que lhe era bastante peculiar. Essa mistura dos cheiros de cigarros de palha, alho, arruda, vela e outras quiquinharias que sempre o acompanhavam, davam às suas roupas um cheiro bem característico. Além disso sempre que voltava para Paranapuã, não trazia de volta as roupas que a vó lhe comprara quando de sua última estada aqui. Trazia sempre uma valise cheia de bugigangas, roupas e calçados imprestáveis.  Entretanto o Miguelão nessas ocasiões jamais deixava a discussão se desenvolver. Era habilidoso nisso. Abria um sorriso maroto, todo puro e exclamava:
                                -Maria, se te contar você não acredita. Ah! Não acredita.Não acredita, não. Sabe aquela camisa nova que você me comprou lá na venda do Mané português. Sabe ? Ah Maria ! Nem te conto ! Fui dar água pro gado de teu irmão José, la em "Sargado", e você não há de ver que o boi me avançou ? Me avançou, eu corri, fui passar a cerca de arame farpado, e a camisa ficou lá, pendurada na cerca, toda rasgada, imprestável. Ah Maria ! Eu chorei. Juro que chorei. Pronto estava explicado o sumiço da camisa.
                                 Era um personagem ímpar e intrigante. Um ser humano de difícil explicação. Talvez ao longo dessa narrativa possamos compreender melhor a composição dessa vida errante, às vezes alegre, às vezes sofrida, porém jamais compreendida. Hoje, diante dos avanços da psicologia, da psiquiatria e da própria medicina, é possível que essa exata compreensão se torne mais fácil, até plausível, porém jamais àquela época e naquele pequeno lugar, onde tinham lugar de absoluto destaque as crenças religiosas e folclóricas, o analfabetismo a desinformação, de tal maneira que pouquíssimas pessoas desse convívio acreditavam que a terra fosse realmente redonda...Nesse contexto, como compreender, ou como ajudar no ajuste dos pensamentos de alguém ?
                                  O Miguelão portava uma séria deficiência mental, o que era claro e evidente, e o tornava inconseqüente, indolente, preguiçoso, com mais uma gama de vícios físicos e psíquicos, fazendo-o uma pessoa de difícil convivência, às vezes ingênuo e dócil como uma criança qualquer, e às vezes, intolerante e até violento, ameaçando aqueles se antepunham às suas vontades.
                                  Por outro lado às vezes tinha lampejos de uma inteligência privilegiada, e de uma memória invejável, narrando fatos acontecidos no passado, quer da história, da religião, ou familiares, com uma riqueza de detalhes que se faziam boquiabertos aqueles que o ouviam.
                                 Nesse pequeno lugarejo, e de maneira particular nesse convívio familiar, encontramos personagens sem paradoxos, únicos, que se juntavam num convívio que transitava do alegre ao trágico como se os acontecimentos não tivessem tanta influência em seu viver, como se as coisas acontecessem simplesmente por pré determinação, sem que pudessem influir em seus próprios destinos. 
                                 O vô Marcello viera imigrante da Espanha quando da iminência da 2ª Guerra Mundial, juntamente com seus 7 ou 8 irmãos, trazidos pelo pai Marcial, e pela mãe, "la guelita (maneira carinhosa de dizer vovózinha em espanhól), e pelo que se pode apurar não vieram ao Brasil, como simples imigrantes pobres, à procura do eldorado, já que não eram dos mais necessitados na Espanha onde atuavam nos últimos tempos no ramo de padaria, e não viviam nenhuma calamidade financeira.. Ao que parece meu bisavô, Marcial, saíra da Espanha com medo de ver os filhos, todos jovens sendo recrutados para a guerra. A princípio parece que a família se manteve unida, depois, aos poucos se dispersou, juntamente com tios e primos que supostamente fizeram a mesma peregrinação. O vô Marcello, então um jovem com seus vinte e poucos anos,  juntamente com a família vieram para a região de  São José do Rio Preto, e acabaram por se fixarem numa fazenda entre Bálsamo e Mirassol, denominada Fazenda Tatu, onde certamente começaram como colonos trabalhando nas lavouras de café. Nessa fazenda Tatu, já residia a família Fernandes, da vó Maria, do tio Zeico, e do Miguelão, entre outros. O vô e a vó se casaram nesse local logo no início dos anos trinta, e dali se mudaram para a fazenda da Invernada, perto de Mirassolândia ( onde anos depois os meus pais Marcilino e Cidinha se conheceram), levando para lá ainda crianças os meninos Marcilino, Miguézinho e Emília. Os Caffer já moravam na Invernada, e ficaram vizinho dos Duran, dali para o namoro e casamento de meus pais foi só uma questão de esperar o tempo certo.
                                     A vó (Maria Fernandes), por sua vez não era espanhola de nascimento. Seus pais migraram para o Brasil, e aqui tiveram a pequena Maria, e com ela nos braços retornaram à Espanha (gostaria de saber o local), onde a criaram. Depois, com ela já moça, a família retorna ao Brasil, trazendo a Maria, que de brasileira mesmo, só tinha a certidão de nascimento. Nesse retorno da família Fernandes ao Brasil, não existia o pequeno Miguel, que nasceu logo após a chegada,  em solo brasileiro.                     
                                     A Avenida Ângelo Takaki, fazia a confluência das saídas de Paranapuã para Jales e de outro lado para Populina. Se constituia  na mais movimentada da localidade. Parece que por essa região do oeste paulista a lavoura de arroz vinha dando muito resultado, e a prova disso é que apenas nessa pequena cidadela já contávamos com diversas máquinas de beneficiar arroz. Duas eram as necessidades básicas nesse tipo de empreendimento. A primeira delas era de subsistência. Os lavradores que para ali vinham produziam o arroz para seu gasto familiar, porém à esta altura dos fatos, o velho pilão já era coisa do passado, então se utilizavam das pequenas máquinas de benefício, onde entregavam à época da colheita a quantidade de arroz em casca necessária ao consumo anual, e periodicamente conforme suas necessidades, vinham à vila aos sábados onde as máquinas mediante um certo pagamento, ou certa parte do arroz limpo mais farelo e quirela, entregavam ao roceiro o arroz limpinho prontinho para o consumo. A segunda dessas necessidades era o beneficiamento do arroz produzido no local, que era adquirido "in natura" ou seja em casca pelos comerciantes, e após beneficiado era levado e comercializado nas grandes cidades.
                                      O vô Marcelo, com os filhos Marcilino e Miguelzinho se estabeleceram a princípio com uma pequena venda nessa avenida à altura do 3º quarteirão, depois construíram um  prédio onde instalaram uma dessas máquinas de beneficiar arroz. Logo à entrada da cidade para quem vinha de Jales havia a máquina dos irmãos Carrasco, depois do mesmo lado esquerdo da avenida, cerca de 100 metros adiante ficava a Maquina Brasil, do Sr. Marcello Duran e filhos. As tais máquinas de arroz, como os bares serviam de referências e eram "pontos de ônibus", e justamente em frente a essa maquina dos Duran era onde o Miguelão desembarcava de suas odisséias. E era ali nesse final de avenida onde os viajantes e transeuntes buscavam seus destinos, que logo no dia seguinte à sua chegada, montava seu “pedágio” com o objetivo de faturar algum dinheiro. Se punha de plantão, às vezes por longas horas à espera de que algum cavaleiro solitário, ou o carro de algum incauto viajante apontasse  rumo à saída da cidade. Aí o Miguelão montava o seu teatro:  Chapéu na mão, com frenéticos acenos, saltava à frente do veículo ou do pobre cavaleiro, e aos gritos de –Pára, -pára, -pára, -pára, fazia com que o transeunte se detivesse a ouvi-lo. Aí então vinha uma verdadeira rajada de argumentos. A mente trabalhava num ritmo tão frenético que deixava a pessoa abordada praticamente sem nenhuma ação, e como último recurso para se desvencilhar do pedinte acabava por deixar-lhe algum dinheiro. Diante daquelas pessoas que o cercavam, o Miguelão se valia de táticas muito eficazes para vender seu produto. Nessas horas, certamente devido à religiosidade da família tinha por hábito tratar as pessoas como “irmãos”, então lá vinha com o discurso:
                              _  Irmão, pelo amor de "Diós", me socorre. Estou  numa situação calamitosa, ai, ai, ai, ai "tô fazendo uma coleta braba, braba, mai braba memo", "e tô muito ruim de saúde; constipado, com tosse, sem um tostom de réi pra comprá um remédio". Ficava olhando para o forasteiro, aguardando a sua reação, se percebesse que poderia ser negativa, então se aproximava mais, se punha numa posição de maior intimidade quase sempre com a mão colocada sobre o ombro da "vítima". A voz baixa, grave, quase sussurrada como se contasse um segredo:  — Irmão, como a coisa tá difícil, não se acha trabalho, quando aparece querem pagar uma miséria. Sabe irmão, cheguei ontem de "Generá Sargado", e se o irmão vê a situação por lá, o irmão chora, ah chora, irmão, uma seca, que seca, uma miséria. Irmão, se lhe conta que chequei sem um tostão de réis, parece mentira. Assim aos poucos cercava o pobre por todos os lados, se realmente a pessoa não tivesse dinheiro ficava sem o maço de cigarros, sem a caixa de fósforo, sem uma quiquinharia qualquer, mas não ia embora sem ajudar na "coleta". Quando a “vítima” era gente do lugar, conhecedora das artimanhas do Miguelão, outro tipo de diálogo era inevitável:
                             _ Ora, "Migué", mas você não é cunhado do Marcello ? E ele não é cheio da grana ?
Então aparecia o riso mais irônico do mundo.
                             _ Ah! Ah! Ah! Ah! O Marcello meu cunhado ? Aquele é podre de rico "má sabe" quanto me dá ? Nada. Nada! Nada! Nada! Se eu não me viro com minhas coletas morro de fome. Aquilo é um "mão de vaca", ninguém tira um "miréis" daquela mão. E a minha irmã Maria, coitada, não pode fazer nada, o marido não deixa. Irmão, vem cá, vem cá , tem dia que o irmão sabe o que é o meu "armoço" ? Sabe ? "Arró... com arfácia". Só. Só.

                   Bem mas essa história do "arró com arfácia" por vezes acabou acontecendo, porém não era bem dessa maneira narrada ali como argumentou o Miguelão. Ocorre que a vó Maria vivera as dificuldades próprias da época, e particularmente de uma família grande, imigrante, onde às vezes até o racionamento de alimentos era necessário; então tinha consigo o hábito de não permitir nenhum tipo de desperdício, e de certa maneira mantinha a comida bem dentro do necessário. Claro que agora os tempos eram outros e não havia mais tanta necessidade de rigor nesses hábitos. Mas ela se habituava a servir a mesa apenas para os dois, e dentro dessa filosofia econômica, se eram dois à mesa, eram preparados apenas dois bifes, ou duas bistecas, ou o quer que fosse, nenhum dos dois jamais se davam ao luxo de repetir a "mistura". Mais tarde, bem fora de hora, como de costume aparecia o Miguelão aos gritos (como sempre). Maria! Maria! Maria! Quero "armoçá". Ai, ai, ai, ai, a vó que se esquecera outra vez do hóspede e não lhe preparara seu quinhão de carne, então que fazer ? 
                                 O Miguelão alheio aos acontecimentos se punha junto ao cimentado que cobria o poço, e que lhe servia de mesa para as refeições, e semi de joelhos (ajoelhado com uma perna só) fazia suas estapafúrdias orações, fazendo mil caretas diferentes enquanto balbuciava coisas  sem nexo, e esfregava insistentemente uma faca ou tesoura na testa. Quando tirava o chapéu despencava o monte de coisas que ele trazia ali debaixo. Às vezes, para que essas quinquinharias não caísse ele amarrava as quatro pontas de um lenço, fazendo uma espécie de boné que usava sob o chapéu. Embaixo desse boné improvisado ele trazia pequenos galhos de arruda, de gambá, que deve seu nome ao fato de ser uma planta das mais fedidas, dentes de alho, tocos do cigarro de palha, etc. A vó à beira do fogão preparava o prato bem cheio: arroz, feijão, duas rodelas de tomate e cobria tudo com alface, bastante alface, muita alface, acompanhado por uma pequena bacia cheia... de alface... A princípio ele olhava desconfiado, como quem já conhecesse essa camuflagem, depois com a ajuda de uma colher ia aos poucos procurando pela beirada do prato, sob a montanha de alface algum pedacinho de carne. Constatada a inexistência de qualquer alimento de origem animal ele explodia num grito indignado:
                               _ Maria! Maria! Mão de vaca, você pensa que eu sou 
preá ?
                               Pegava o prato e saia em disparada rumo à nossa casa.             _ Cidinha, Cidinha pelo amor de Deus, me socorre. Me socorre. Veja só o que a minha irmã me arrumou de janta. Ela pensa que eu sou preá. Cidinha, me frita um bife, pelo amor de Deus. A minha mãe sempre fazia muita comida, para toda a família, e geralmente ainda tinha sempre mais alguém para comer, de forma que sempre tinha alguma coisa mais ou menos pronta na geladeira. Enquanto ela fritava o bife o Miguelão aguardava sentado lá fora em silêncio com o prato na mão. Depois comia como um leão faminto. 
                                Comentavam que quando rapaz, o Miguelão era  um belo mancebo, e àquela época não era tão desajuizado assim. Era muito trabalhador e levava normalmente a vida junto da comunidade que o cercava. (Ainda agora, ele dava sinais de que fora uma pessoa voltada para o trabalho, pois sempre que se dispunha, o que era raro, mas acontecia às vezes, mostrava muito vigor físico, e um desempenho acima da média nos trabalhos mais pesados). Até que aos 19 ou 20 anos apaixonou-se perdidamente pela bela Heleninha, com quem chegou a conviver sob o mesmo teto por um certo tempo, mas pelo que sabe a moça não era das mais virtuosas, tendo comportamento não condizente com o papel de mulher casada, embora muito bonita, já era dona de um passado bastante nebuloso, inclusive trazendo consigo para o lar do Miguelão uma filhinha pequena e por fim,acabou por abandonar o lar conjugal, deixando o pobre jovem Miguel completamente transtornado. A partir de então se acentuaram os sinais de desequilíbrio que já eram evidentes, acabando por deixá-lo cada vez mais fora da realidade.
                               Tenho na minha lembrança ter ouvido inúmeras vezes o Miguelão fazer comentários a respeito da bela Heleninha, principalmente quando minha mãe o fustigava para que contasse as peripécias vividas nesse romance. Às vezes se mostrava aborrecido, e se recusava a continuar a conversa:
                               - Cidinha, pelo amor de "Diós", no me toque nesse assunto. No, no, no me toque. E caso insistisse:
                               - No, no, no, no, nesse assunto eu no falo. Hoje no.
Outras vezes estava mais suscetível, e se punha como uma criança abobalhada da relembrar o doce idílio. Nessas horas se perdia em comentários sobre a beleza da moça ( branca, alva, cabelos loiros cacheados e olhos azuis ), e como minha mãe o fustigasse ele acabava por se deter em comentários sobre o romance...
                               Ah ! Cidinha, foi tudo muito bonito, muito lindo, naquele dia do enlace eu me vesti de terno e gravata, e fiquei com meu pai e minha mãe à espera da noiva, então o pai dela chegou me trazendo a donzela montada num cavalo branco.       
                         _ E ela tio Migué, ela veio vestida de noiva ? Também toda de branco ?
                         _ No, no, no, no Cidinha, você não entende que ela não era mais moça ? Que trazia uma filhinha pequena ?
                         _ Então ela veio com a menina ?
                         _ No Cidinha, ah, ah, ah, você não entende mesmo. A mãe dela ficou com a menina por uns dias durante a lua de mel.
                         _Então teve lua de mel tio Migué ?
                         _ Teve, claro que teve, todo casamento tem que ter lua de mel.                                                                                                                  
                         Por fim acabava aborrecido, magoado, falando do abandono do qual fora vítima:

                         _ Foi a "imbidia" (inveja) Cidinha, Esse povo é muito "imbidioso". E se enraivecia:
                         _ Esse povo não presta. É raça de víboras. Pois não foram capazes de crucificar Jesus Cristo ? E quem matou Jesus ? Quem ?
                            A "imbidia".
                          
                           Os meus pais se casaram, e pouco tempo depois a família toda mudou-se para Paranapuã, onde nasci logo em seguida. A tia Emília (que é também minha madrinha de batizado)deve ter se casado logo depois, quando eu ainda era muito pequeno, já que não tenho nenhuma lembrança desse casamento, entretanto me lembro muito vagamente do casamento do tio Miguézinho com a tia Vitória.
                          Nessa minha primeira infância tenho boas recordações do vô Marcello, comigo no colo, rindo muito e me ensinando a cantar antigas canções em espanhol, depois contando as histórias rimadas (também em  espanhol), sendo que eu mais gostava daquela do lobo que roubava as ovelhas e era perseguido pelos cachorros, que acabavam por pegá-lo. Até hoje trago na memória trechos dessa estória de minha infância: Depois da ovelha roubada por uma astuta loba faminta, o dono do rebanho chama a matilha de cães e lhes dá as ordens:
                            " Arriba, perros catchorros, arriba perras guardianas, se me la traei, tenei la cena ganada, mas se no la traei, la cena esta cancelada. E se passaron siete leguas, quando la loba se ya cansada... " E ao atravessar um riacho foi pega pelos cachorros, e vendo tudo perdido quis devolver-lhes a ovelha roubada, que foi recusada pelos cães que retrucaram:
                              "No, no quieremo tu cordeiro, de tu boca maltratada, quieremo esse tu coro, para assier uma fornada, tu dientes para piendentes, tus corniyos para niyos, e tuas molas para castanhola, Tchacarra, tchacarra, tchacarra."
                              Até então eu estava atendo à estória, e o vô me fazia cócegas embaixo dos braços, e ria comigo largamente.
                              Outra lembrança gostosa desses primeiros anos era quando estávamos em casa à noite sob a luz das lamparinas, com tudo trancado com medo do escuro, e ouvíamos bater de leve na porta.
                              - Quem é ?
                              É la guelita. Abri, abri, hijitos.
                              Era a vó, que sempre vinha com alguns docinhos nos bolsos do vestido.
                              E esse negócio de doces, era interessante, sempre que era anunciada a chegada de algum parente para os próximos dias, a criançada se punha em polvorosa, e já corria entre todos a especulação, sobre que tipo de doces viria dessa vez. Mas o preferido mesmo eram as balas, que sempre vinham aos quilos.
                               O vô Marcello mantinha sempre seu quintal muito limpo, sua horta era irrigada com rigor duas    vezes ao dia, e ali tínhamos verduras das mais variadas  espécies, desde alface, até acelga ou rúcula como quiabo,  xuxu e até uma pequena parreira de uvas. Mais, as laranjeiras, sempre muito bondosas em produzir com abundância, como que agradecendo aos bons tratos, depois os limoeiros, e bem no fundo do quintal o chiqueiro dos porcos. Desses, nós crianças não gostávamos muito, visto que vez ou outra o vô nos impunha a limpeza dos cochos e seu novo abastecimento. Entretanto, vez ou outra, a cada três ou quatro meses dali   surgia uma verdadeira festa em família; era o domingo que se tirava para matar o porco gordo, geralmente um capado enorme, que de tanto comer e engordar já não conseguia nem mesmo ficar de pé. Então a família se preparava; amanhã é dia de matar porco. Oba!!! Oba!!! Oba!!! Além da fartura ocasionada pelo momento, haviam outros acontecimentos   acessórios que principalmente a criançada participava com toda alegria e ansiedade.Primeiro era o ritual da matança, desde a captura (desnecessária) no chiqueiro, os preparativos, e a facada mortal, bem no coração (o que conferíamos na    dissecação dos órgãos mais tarde). Os gritos de agonia do pobre animal que fazia a criançada arrepiar ao redor do abate. Depois a água quente, (-Crianças! Afastem-se! Isso queima!) e a água vinha borbulhando sobre a pele  do animal, que na  raspagem ligeira das facas deixava o bicho branquinho. Então era aberto pelo peito e pela barriga até o rabo, retirando de dentro todos os órgãos. A barrigada era separada, parte para o sabão, parte para ser limpa para a linguiça. Os órgãos eram separados conforme a sua utilidade, e não raro saia algum menino enchendo a bexiga com um talo de mamoneira.
                                 As carnes também eram separadas cada qual de acordo com sua utilidade, e ao se aproximar a hora do almoço,     vinha o momento mais saboroso, quase tão “solene” quanto a hora da matança, mas certamente o mais esperado. O      lombo do porco era separado, e a vó se encarregava de   preparar a mais saborosa chuleta que já pude experimentar. Era um almoço simples e rápido, onde se comia com os    pratos nas mãos, sem ir à mesa, tantos que eram os afazeres de todos. Consistia em arroz, feijão, um  pedaço de pão,   salada e a chuleta preparada pela vó Maria. (Dessa chuleta nunca mais me esqueci, assim como dos mantecais que vinham à mesa no café da tarde.
                                Após o almoço havia ainda muito a ser feito, a carne era separada: costelas e outras partes a serem fritas iam para o tacho, outra parte era repartida entre linguiça e almôndegas. As almôndegas, junto a carne frita ia para uma lata de 20 litros muito bem fechada, mergulhada na gordura obtida na fritura dos torresmos. A linguiça era pendurada em um varal para enxugar, e no final do dia tudo o que restava ia para o tacho com soda para  se transformar em sabão. Mas antes ainda havia uma parte de carne separada para ser distribuída entre os vizinhos. Era quando as crianças mais grandinhas entravam no vai e vem com os pratos de carnes, cobertos com um pano de cozinha, sempre na expectativa do que poderia voltar dentro    deles. De alguns vizinhos voltavam cabeças de cebola, dentes de alho, frutas, etc, entretanto de alguns, como era o caso da irmã Antonia Sanches, dona da venda da esquina, o prato voltava repleto de paçocas, pés de moleque, doces de abóbora e balas, que proporcionava à menina mais uma  festança.
Na manhã seguinte o sabão era retirado do tacho, cortado e colocado em pedaços em cima de girais de tábua para enxugar. Era mais uma relíquia tirada do chiqueiro do vô Marcello.
                                 Nessas doces lembranças do tempo em que éramos simples crianças, pobres e ingênuas, sem nenhuma preocupação com dia de amanhã, o dia de matar porco era um dia muito especial, assim como algumas outras datas, que nos proporcionavam acontecimentos diferentes, como a possibilidade de saborear um doce, uma bala, beber uma sodinha (refrigerante de limão) sem gelo, brincar, ou simplesmente não ter os nossos pais vigilantes sobre os nossos passos, impondo-nos a cada segundo um maior rigor e disciplina. Assim, vez por outra o vô ou a vó apareciam lá em casa, geralmente num sábado, ou na véspera de um feriado..
                                 "-Parecida, amanhana nom precissa  se preocupar com  armorço. Bai sê lá em cassa. A Emília  mandou abissá que viene com  família."
                                  Para nós crianças esse era um dia muito especial, afinal sairia um almoço diferente, com muita fartura, com refrigerantes (sem gelo), e à tarde uma merenda cheia de guloseimas. Nem dormíamos direito, e logo pela manhã lá íamos nós para a casa da vó.  -A tia   Emília já chegou?  -No, no, ainda no. Dali a pouco voltávamos e a cena se repetia, até que apontava na avenida a esperada caminhonete, e desembarcavam a Tia Emília, o Tio Angelim e as quatro filhas pequenas. Era uma festança com muita gene falando alto (casa de espanhóis), enquanto a vó não arredava pé da beira do fogão, sempre acessorada pela minha mãe e pela empregada da casa.
O frango era preparado em molho e a macarronada bem    enxuta. O arroz ia ao forno com frango desfiado e muito tempero. Era o famoso “Arró de forno”. O vô Marcello saia de fininho e  apouco voltava com três cotubainas e uma sodinha para cada uma das crianças, que só seriam abertas na hora que a comida estivesse à mesa. Então os adultos se    sentavam e e a criançada se punha em volta do caixão do poço (onde era o “refeitório” do MIguelão que nessas     ocasiões comia recluso em seu quartinho). As cotubas eram abertas e colocadas à mesa, mas as sodinhas das crianças tinham apenas as tampinhas perfuradas com um prego para que durassem bastante. Assim a sorvíamos gota a gota.
                                Mais tarde era servida a merenda, com chá, café leite, pão, manteiga, rosquinhas, um belo bolo preparado para a ocasião e os irrecusáveis mantecais.
                                A tarde se escoava, e o dia ia embora, levando com ele os parentes pela estrada poeirenta, e ali ficávamos nós, esperando a chegada do  mês seguinte.

                                  Fui o primeiro neto dos meus avós, tanto paternos quanto maternos, já que meus pais também eram os filhos mais velhos em suas famílias, e por isso é muito provável que tenha sido muito mimado desde criancinha. O que me lembro bem dessa primeira infância, é que me chamavam carinhosamente de Valtinho, que o vô e a vó “aportunholaram” para “Bartinho”, entretanto para o Miguelão eu não me chamava “Bartinho”, mas “Albertinho”, de maneira que para ele o meu nome nunca foi Valter, mas Alberto.
                                De certa feita estávamos absorvidos em nossas atividades na chácara, quando o Miguelão procurou por mim, me chamando baixinho para um canto, como se   fosse me contar um segredo.
                                 -Albertinho, bem cá, bamo tirá  mel de abêia. Descobri um enxame de abêia, num tronco ai pertinho. Olha Albertinho,  cheinho de mel. Bamo tirá.
                                 Para mim esse era um convite irrecusável, mas fiquei surpreso.
                                 -Mas tio Migué, e o senhor sabe tirar  mel de abelhas?
                                 -Ah! Ah! Ah! Ah!, uma longa gargalhada. –Se eu sei? -Se eu sei? -Claro que sei, já tirei muito mel. É fácil, vamos?
                                -Bom, então vamos.
                                A primeira providência foi conhecermos bem o local, como dois  do mel, como dois experts nos assuntos da apicultura. O enxame estava no meio de uma pequena mata, ali bem perto. Havia um grande tronco  caído no meio das árvores, que preso nas ramagens e cipós, se erguia a cerca de um metro do chão. O lado de baixo do tronco era de formato favorável à morada de abelhas, já que era parecido com um longo cocho, e ali nessa cavidade as abelhas se agasalharam, certamente há muito tempo. Era um enxame magnífico. Uma colméia ímpar, com cerca de vinte favos,bem grandes, alinhados lado a lado, onde de vez em quando em meio à efervescência das abelhas aparecia o me amarelinho, quase se desprendendo dos favos...
                           O Miguelão diante dessa visão era só empolgação, e não parava de cochichar em meu ouvido:
                           -Aí tem mel prá mais de “binte litro”. Prá mais de binte litro! E exibia o largo sorriso de poucos dentes, como quem ganha na loteria, como quem vai por a mão num tesouro.
                          Voltamos para a casa e iniciamos os preparativos. Tudo tinha que ser cuidadosamente planejado, e agíamos como dois profissionais da apicultura. Primeiro alguns tuchos de pano tirados de um vestido velho de minha mãe, que ao serem queimados serviriam para “acalmar” as abelhas, conforme me explicava com detalhes o Miguelão.Uma boa faca, comprida e com fino corte para decepar os favos bem junto à base, sem ofender a uma abelha que fosse, e muita erva cidreira embebida em água açucarada , que também tinha por finalidade desviar para ali a atenção da abelhada.
                           Tudo preparado aguardamos o entardecer, segundo o meu “mestre” a hora exata para extrair o mel, e rumamos para a pequena mata, que ocultava tão inestimável tesouro e tão valioso segredo. O miguelão seguia à frente, semi abaixado, faca numa mão, um tucho de pano na outra, armado para a batalha, cigarro de palha na boca e sempre meio abaixado se virava a cada instante para me pedir absoluto silêncio. –Psiu, psiu, psiu, se fizer barulho vai espantar as abelhas, psiu, psiu, psiu; e eu , no mais absoluto silêncio, aguardando as ordens, camisa de manga comprida para o caso de alguma abelha mais afoita vir para cima de mim, chapéu de palha na cabeça, pelo mesmo motivo, e um enorme balde de latão em cada mão. Então o Miguelão deu início à operação de retirada do mel. Se pos de joelhos, bem ao lado do enxame de abelhas e acendeu o tucho que trazia à mão embebido em óleo queimado. Deixou que queimasse um pouco e depois apagou, provocando muita fumaça, depois deixou esse tucho fumascento no chão, bem embaixo dos favos e da colméia inteira, que agora se agitava em estado de alerta. Eu a uma distância de cinco ou seis metros observava admirado a habilidade do tio Migué com as abelhas. Quem diria; logo ele, o Miguelão, um expert no trato com as abelhas. Um exímio apicultor. E que calma. Que calma! Um homem tão estabanado, que todos conheciam por ser  inepto em tudo quanto se propunha a fazer, agora no trato com as abelhas era meticuloso, desde o preparo da operação, como agora ao lidar diretamente com o enxame em efervescência.
                                   Enquanto isso o tucho de panos colocado ao chão, queimava junto com as folhas secas enchendo cada vez mais o ambiente de fumaça.
                                   Tirou da boca o cigarro de palha, que já se apagara e calmamente o reacendeu, aspirou bem fundo e deu duas baforadas fumacentas bem longas  na direção das abelhas. Nessa hora olhou novamente para mim, que observava de olhos arregalados, abriu um grande sorriso, como quem diz: -É agora! Levou a faca em direção ao primeiro favo. Foi como um choque elétrico na colméia. As abelhas pareceram obedecer a um comando único. Então em massa, literalmente todas deixaram a colméia e o tronco, e  alucinadas para cima do Miguelão. Eu estava a alguns metros de distância quando tomei fé da situação, joguei os baldes para o chão, cheios de erva cidreira com água doce e tuchos de panos velhos, e saí pala mata afora na maior disparada, fazendo valer a minha condição de menino leve e ágil, enquanto  de mim vinha um verdadeiro estouro de boiada, um tropel sem precedentes, como se um touro acuado e enraivecido viesse rompendo pela mata afora..  Era o pobre do Miguelão que vinha gritando como um louco, tropeçando pelos troncos  caídos e as abelhas como kamikazes voando sobre ele, que tropeçava, caia e se levantava depressa; se enroscava nos cipós, arrebentava, corria, corria, corria. Até que nos vimos fora da mata. 
                            -Ai, ai, ai, ai, ai, socorro, pelo amor de Deus, socorro ai, ai, ai, ai, ai. Albertinho me socorre. Me socorre pelo amor de “Diós”. Me socorre. Levei mais de tres mil picadas. Me socorre. Corri para junto dele e ajudava a “descolar” as abelhas por debaixo de suas roupas, por todos os lados, desde as meias dos pés até o último fio de cabelo, tudo era abelha. E abelha furiosa. O Miguelão gritava cada vez mais, e a essa altura minha mãe já ouvira a gritaria e vinha correndo com um litro de álcool à mão em socorro das vítimas. (Apesar de termos feito tudo em segredo, minha mãe percebera qualquer movimento estranho por ali, e já se precavera para o caso de algum acidente). Eu havia  saído quase ileso da mata, apenas com  alguns arranhões e umas poucas picadas de    abelhas, mas o pobre Miguelão... Ai meu Deus. Coitado!
                                             Fora severamente castigado, e enquanto minha mãe lhe prestava os primeiros socorros espalhando álcool pelo seu pescoço, ombros e costas, ele era só gritaria: -Ai, ai, ai, aia, ai.
                                Não sei se essas abelhas foram “domesticadas” depois por alguém, mas uma coisa é certa; o Miguelão nunca mais colocou os pés naquele pedacinho de mato.

                                    Os dias se arrastavam lentamente na pequena vila de Paranapuã. Pelas ruas escuras à noite os uivos de cães aterrorizavam a criançada que tinha verdadeiro pavor de cachorro louco, tantas que eram as histórias contadas por todos sobre cães enlouquecidos que horrorizavam as comunidades. Avançávamos pelos anos 60 e nossas histórias iam sendo escritas à mercê desses acontecimentos, sem que fatores externos nos pudessem mudar o comportamento, e sem que nos déssemos conta disso.
                                   O vô Marcelo com certeza trazia na lembrança traumas inquestionáveis das guerras na Europa, do recrudescimento na  Espanha com a ditadura do    Generalíssimo Franco, e agora vivia apavorado diante dos fatos que culminaram com o golpe de 64 e com a possibilidade de uma guerra civil. Quando eclodiu o golpe de 31 de março de 64, com a tomada do poder pelos militares o vô rapidamente alinhou seus ideais bem à direita, fazendo-se um ardoroso combatente “ de los comunistas”. Anos depois quando eu e meu irmão Valdeir já   éramos pré adolescentes  e o vô ainda carregava esse   mesmo medo. Talvez por pura provocação, ou por contestação mesmo, nos mostrávamos adeptos da esquerda e alinhados ao M.D.B., ao qual nos referíamos como “Manda Brasa”, sendo que nas eleições nos colocávamos favoráveis ou torcedores (já que não votávamos) aos      candidatos desse partido. O vô se irritava com isso e comentava furioso com o meu pai: -Esses moleques ainda colocam o pai e o avô na cadeia com essas idéias comunistas.

                             O Miguelão por sua vez não tinha nenhum interesse por política, entretanto vivia envolvido, e muito, com os  políticos, sempre à procura de ganhar algum dinheiro. Corria aos gritos  dos candidatos de qualquer partido tentando arrumar alguma vantagem. Se lhe dessem algum trocado capaz de comprar pelo menos um maço de cigarros barato tinha o discurso garantido, e aos gritos: -Esse é macho! Esse é homem! É macho! E abanava no ar a nota presenteada, cada vez gritando mais alto. É macho! Esse é macho!      
                              Nessa época o ramo do benefício de arroz ia muito bem na região, e a família Duran, como outras do local, lograva progresso rápido; a pequena máquina de benefício foi trocada por outra bem maior, e se multiplicaram bem depressa os armazéns que abrigavam a mercadoria. Freneticamente eram descarregados os caminhões com arroz em casca vindos das mais diversas localidades, desde a vizinhança bem próxima até dos longínguos sertões de Mato Grosso. Nesse mesmo ritmo o arroz em casca era beneficiado e transformado em outros subprodutos, além do arroz branquinho, limpinho e glicosado, que os saqueiros bem depressa levavam para cima de outro caminhão que seguia à tardinha para São Paulo, onde era comercializado. Entre os subprodutos do arroz em casca vinha primeiro o meio arroz, que nada mais era que os pedaços maiores do arroz que ao ser beneficiado se quebrava, e que por ser um produto de preço bem menor era levado à mesa das famílias menos favorecidas financeiramente. Quando o arroz tinha baixa qualidade e ao se beneficiar era muito quebrado, a produção do meio arroz era muito grande, então também seguia para São Paulo, onde era vendido para as fábricas de cerveja, que o utilizavam na fermentação. Ainda eram produzidas a quirera e o farelo de arroz, utilizados largamente na alimentação de animais, principalmente; e por último, com menor utilidade vinha a palha de arroz (casca), que era conduzida por ventiladores  através de um tubo de madeira para os fundos da máquina, onde a criançada se reunia para brincar em infindas cambalhotas.
                              Nesse ritmo as coisas progrediram durante quase 10 anos, até que vieram à tona, pequenos aborrecimentos. Tolas divergências se avolumaram, e pouco a pouco os interesses se individualizaram, então afloraram as discussões. Aquela era uma típica família de imigrantes espanhóis, que tinha com o único objetivo o trabalho duro, a conquista dos bens à custa de muitos    sacrifícios e de muita luta, porém com muitas e muitas teimosias, muitas e muitas divergências, e muitas e muitas discussões.
                             Todo esse quadro culminou com a esperada e temida separação da sociedade dos filhos com o vô Marcello, cabendo ao meu pai e à nossa família uma pequena chácara limítrofe ao vilarejo, um caminhão Chevrolet 1958, e um certo quinhão em dinheiro; ficando o vô Marcello com o tio Miguézinho de posse da máquina de beneficiar arroz, à qual voltaríamos anos mais tarde, particularmente eu e meu irmão Valdeir, onde protagonizaríamos outras aventuras incríveis. Na chácara, meu pai se estabeleceu com uma criação e engorda de porcos. E construiu bem ao lado da nossa casa um enorme barracão (onde me lembro de se amontoarem centenas de pequenos ratos), que servia para a garagem do caminhão, de depósito para o alimento dos porcos, e de tantas outras quinquinharias. Pois bem ali, nesse fétido barracão, veio tomar por seu lar, o Miguelão, que montou a sua cama bem aos fundos do armazém com todas as suas bugigangas, seus amuletos, e principalmente com seu “cheiro” característico, que junto com o “perfume” da urina dos ratos, e muitos escarros espalhados pelo chão faziam do barracão um local nada agradável, onde era difícil permanecer por mais de alguns poucos minutos. Mas o Miguelão não sentia cheiros, e nem se dava conta de nada, e além disso estava demasiadamente feliz com o novo lar, bem longe das implicâncias da irmã (a vó Maria) e do cunhado Marcello. Ali agora era o paraíso, onde podia dormir o dia todo contando com uma  maior  tolerância por parte de minha mãe, que sempre atribulada com a filharada não dispunha de tempo para se incomodar com suas pataguadas.
                                Depois que meu pai deixou a sociedade, as divergências continuaram entre o vô Marcello e o tio Miguézinho, que já há muito tempo se casara com a tia Vitória Sansão, tendo nessa época dois filhos, Tânia e Adenir. Ocorre que o velho Sansão juntamente com seus filhos venderam a propriedade que  em Paranapuã, e com o valor da venda compraram uma área infinitamente maior numa localidade próxima de Barra do Bugres em Mato Grosso. O Miguézinho foi conhecer o local e se empolgou com a façanha dos parentes, e encorajado pela esposa Vitória fez um acerto com o vô Marcelo, e com o dinheiro angariado comprou também uma boa área junto da família Sansão. Assim por algum tempo o vô Marcello ficou sozinho com a máquina de beneficiar arroz.

                             Nessa época o Miguelão estava quase sempre na chácara, mas como eu disse, era nômade, e não tinha alicerces, sendo que ora estava na chácara, ora com a vó Maria, ora em General Salgado, etc. etc.
                             Na chácara tínhamos certos hábitos bastante rurais. O jantar era servido muito cedo, antes do anoitecer devido à falta de luz elétrica, depois, mais tarde vinha o serão no terreiro à luz das fumacentas lamparinas, onde nunca faltavam visitas. Meus pais ( e nós crianças os acompanhávamos) faziam parte de uma religião evangélica, e geralmente nas noites que não se iam aos cultos, compareciam uns nas casas do outros, aos casais, ou mesmo as famílias inteiras a fim de conversarem e falarem acerca das passagens da Bíblia. Depois que as visitas iam embora, enquanto já nos recolhíamos, ouvíamos o Miguelão lá no barracão a berrar suas orações, que ecoavam longe no silêncio das noites escuras.
                                Numa dessas noites os gritos se sucederam e se avolumaram, colocando todos em casa em estado de alerta e atenção. Da varanda nos fundos da nossa casa  até a porta dos fundos do barracão tinha menos que 20 metros, e dali, alertas podíamos ouvir o Miguelão numa gritaria sem precedentes, que se iniciara junto com as rezas à hora de dormir, e se alongavam noite adentro.
                               -No, no, no, no, gritava ele no escuro, sozinho, no, no, no a minha alma no, de jeito nenhum, a minha alma no. Alguns segundos de silêncio, então ele continuava:
                              -Eu sei Jorge, eu sei, eu sei que pode. Mas não quero, não quero, não quero riqueza, não quero ouro, não quero prata, não quero dinheiro, no, no, no,no. De jeito nenhum. Mais alguns segundos de silêncio.
                              Vai embora Jorge, vai embora Nagib, e me deixem em paz. Vão embora, vão embora.
                               Essa gritaria e a pseudo discussão se estendeu por longo tempo, entremeada de choro, risos, gemidos, sapateado e outros “sai capeta” da época. Quando ele se acalmou um pouquinho o meu pai o retirou do barracão, de onde saiu pálido, trêmulo, e falando coisas sem nexo, como quem havia se deparado com fantasmas assustadores.
                               Minha mãe apressadamente lhe trouxe um copo com água bem doce, que ele bebeu, e depois passou a narrar o acontecido.
                               - Marcelino, ah! Marcelino, foram dois  turcos, Marcelino, dois turcos mensageiros do “sataná”, e   queriam me levar com eles de qualquer maneira, de qualquer jeito. “Óia” prá mim Marcelino, “óia só”, como tremo só de lembrar. Me queriam levar. 
                               -Calma tio Migué, calma, calma. Senta aí, senta e conta tudo direitinho.
                               -Marcelino eu tinha acabado de fazer minha oração, e me deitei. Então os dois apareceram do lado da minha cama; o Jorge de bigodinho fino, bem preto, todo vestido num terno branco, até os sapatos eram brancos, e o Nagib, um pouco mais alto e magro, esse não tinha bigode, e todo vestido de preto e de terno também. Chegaram sem fazer barulho, muito educados, me cumprimentaram e me perguntar se eu queria em 24 horas me tornar três vezes mais rico que meu cunhado Marcello, e só queriam em troca a minha alma pro “Sataná”. Só isso, só isso.
                              -Ah! Marcelino eu chorei, juro que chorei viu Cidinha. Chorei, e então eles me ofereceram um jacá cheinho de ouro. Cheinho até a boca, e carros, pedras preciosas, e muito, mas muito dinheiro... Me mostraram os maços de dinheiro, tudo novinho, mas no, no, no, no, nom aceitei. Nom aceitei riqueza. Ah! Não. Bati o pé em nome de meu Santo Antão de Lisboa e das sete chagas de Cristo e mandei eles embora. Quando você entrou no barracão tinham acabado de sair.
                               Algumas outras vezes essa dupla voltou a “visitá-lo” sempre com as mesmas propostas, as mesmas gritarias e o mesmo ritual. Aos poucos fomos nos acostumando com essas “visitas” e com o passar do tempo foram ficando escassas e se evaporaram como tantos outros casos que o Miguelão nos trouxe.
                                  Era nômade, como os homens do     deserto, e jamais poderíamos prever qual seria seu próximo destino, qual seria seu próximo lar. Numa dessas muitas andanças passava uma temporada no sítio do Cristóvão Sanches, meu padrinho de batismo, onde sob o pretexto de colaborar nos serviços da roça, outra vez vivia sob a costumeira mordomia... Num domingo à tarde, quando todos repousavam após o almoço recuperando forças após o exaustivo trabalho da semana, sob um sol de 40 graus, o Miguelão aprontou mais uma das suas trapalhadas. Havia nos fundos da propriedade um pequeno rio denominado córrego das Araras, na altura do local chamado Barra Bonita. Juntou as tralhas do primo (que não era seu primo, mas assim o chamava) Hagapito, marido da tia Lurdes, e de varas e embornal em punho lá foi ele para a beira d’água em busca do maior peixe já fisgado na região. Nessa época o pequeno era bastante piscoso, e os bagres, curimbas e piaus faziam a festa dos pescadores.
                                            O Miguelão saiu à pesca, enquanto as outras pessoas absortas em seus sonolentos afazeres de domingo à tarde por um momento se esqueceram dele. Tudo era silêncio naquele pedaço ermo que se estendia ao longo do rio também sonolento e tranquilo, sem cachoeiras. Sem pressa, rumo ao Rio Grande enquanto o Miguelão pescava num poço junto a uma pequena corredeira, onde a linha desavisada desceu, e o anzol foi de encontro a alguma raiz solta dentro dágua onde se prendeu. A água puxava o anzol preso à raiz, e a  força da água dava a impressão de haver algum peixe fisgado. Por mais que o Miguelão puxasse a força das águas voltava o “peixe” ao início da corredeira. Julgou haver apanhado um peixe dos grandes! Daqueles que não seria capaz de retirar sozinho de dentro do rio. Então abriu a gritaria, na qual já era bastante experiente, e gritava com toda convicção que precisava de ajuda. E logo. 
                            Socorro! Socorro! Socorro! Berrava a todo pulmão à beira das águas. Socorro, socorro, socorro, me ajudem pelo amor de Deus, me ajudem. A vizinhança toda se pôs a correr, imaginando o que poderia ter acontecido. Uns pensavam, o Miguelão caiu no rio, e como não sabe nadar grita por socorro. Vamos salvá-lo. Outros pensavam, pescou um jacaré, e o bicho está furioso, e correram à cata de foices e machados para dominarem a fera perigosa. Ainda outros ao verem tamanha correria, sem saberem o que acontecia, corriam também para a beira do rio  fim de prestarem alguma ajuda. Nesse bafafá o Hagapito foi o primeiro a chegar junto dele, e encontrou o “pescador” ofegante, cansado de puxar a vara para cima e para baixo sem sucesso. O Miguelão pulava e gritava à beira do barranco: -Esse é dos grandes primo, me ajuda aqui, vamos tirar o bicho da água.
                                         Esse é dos grandes primo, me ajuda. E o povo todo da vizinhança foi chegando, todos agora muito curiosos para ver o peixe pego. Foi quando o Hagapito tirou a vara das mãos do Miguelão (vermelhas e suadas) para tomar pé da situação.    Resumindo o caso: A linha descera pela corredeira onde se enroscara numa raiz, e aos poucos foi se enchendo de folhas e pequenas ramas que acompanhavam a linha presa, cada vez pesando mais, e por mais que fosse puxada para cima, a força da correnteza acabava por levá-la para baixo. Ali o Miguelão julgava ter fisgado o seu “peixão”. Naquele dia encerrou a carreira de pescador.

                        A propriedade do vô Marcelo em Paranapuã, era constituída de um grande terreno, onde na esquina ficava o prédio maior que abrigava a máquina de benefício de arroz, com mais de mil metros quadrados; logo pegado à máquina mais abaixo, na avenida, ficava a garagem o caminhão grande, um Alfa Romeu, ou FNM, ou Fenemê como era denominado por todos, possivelmente fabricado mais ou menos em 1950, e nos fundos da garagem ficava a costura de sacos (da qual falaremos adiante), e junto desta, a hospedaria do Miguelão (quando estava residindo com o vô e a vó), mais abaixo a casa de morada dos avós, que confrontava com a casa do Sr. Urbano Tamássio. Virando a esquina na outra frente da máquina, vinha o depósito de palha de arroz, e outro grande barracão, garagem do caminhão menor, etc.Estas construções em forma de L eram completadas com um grande cimentado nos fundos de todas elas, que servia para a secagem do arroz, que porventura viesse úmido da lavoura. Nesse lado dos fundos a propriedade se confrontava com o pomar da Dona Dita, outrora esposa do Arlindão. Um lindo pomar com mais ou menos um hectare de laranjeiras sempre apinhadas de laranjas madurinhas.
                         Nesse cenário, o Miguelão teve outra de suas idéias mirabolantes. Entrar para o ramo da venda de laranjas. Rapidamente juntou algum dinheiro, e lá foi ele de saco nas costas rumo à casa da D. Dita, que ficava do outro lado da quadra:
_ Dona Venedita, me bende medio cento de laranjas. Nessa, e nas primeiras vezes ela o acompanhou até o pomar a fim de apanhar as frutas; entretanto eram só quatro dúzias, que bem depressa ele revendia para as vizinhas ali de perto, e retornava correndo em busca de mais laranjas. A Dona Dita era uma pobre velha sozinha, que aprendera a ser mesquinha, e por mais que o Miguelão comprasse laranjas a todo momento, não baixava o preço, e não dava nenhuma fruta a mais na hora da contagem. Porém se cansou de tantas e tantas idas ao pomar, e passou a confiar ao comprador a colheita das frutas:
- Vai lá Migué, vai, apanha as laranjas e me traga o saco prá eu contá-las.  

                      Agora ele precisava de mim, para ajudá-lo na colheita, para subir nos pés mais altos e apanhar as laranjas mais bonitas, enfim não podia mais trabalhar sozinho. Fui convocado, como sempre, e compareci. Subia nas árvores e apanhava as laranjas mais amarelinhas, mais saudáveis, e depois o acompanhava na contagem. Quase sempre o Miguelão apanhava três ou quatro laranjas a mais, porém a Dona Dita não deixava que ele as levasse:
_ Não, não Migué, deixa essas aí que eu vou chupar na hora do almoço...
                      Naquele viver onde se deixava correr, e não se corria atrás de nada, pelo menos nós, a mente ficava muito parada, então maquinava as coisas mais absurdas. Ali no meio do pomar, eu no alto das laranjeiras, e o Miguelão se pos a pensar: “ E se eu ao invés de levar as laranjas para a Dona Venedita contar, jogá-las por sobre a cerca do meu cunhado Marcello, e depois ir buscá-las do outro lado ?” Do alto de uma laranjeira só ouvi o som das laranjas caindo do outro lado, e logo em seguida o Miguelão debaixo da árvore:
_ Albertinho, depressa, apanha mais laranjas depressa, que precisamos encher o saco outra vez. Deu certo. Colhemos depressa outro meio cento de laranjas que levamos para a contagem da Dona Dita, e o respectivo pagamento, à vista.
                      O Miguelão ficou eufórico com o negócio que agora era duplamente lucrativo. Claro, pagara por 50 laranjas, mas vendera 100. No dia seguinte foi logo cedo `a minha procura e dobrou a aposta. Despejou duas vezes o saco de laranjas por sobre a cerca, pagando novamente só meio cento de laranjas. Com o correr dos dias vendíamos laranjas freneticamente pelas ruas, eu com uma cesta de taboca, e o Miguelão com uma carriola emprestada da máquina de arroz ( O  vô nem sonhava com o que acontecia). Nosso preço era muito baixo, menor até do que a Dona Dita cobrava pelas laranjas no pomar. O Miguelão corria de um lado para o outro sempre na maior gritaria, que nas vendas de laranjas, quer no comentários comigo:

                         _ Albertinho, Albertinho, “dessa vei acertemo a mão, bamo ficá rico” Albertinho.
                         Depressa o Miguelão tinha dinheiro; as coisas melhoraram muito. Na cabeceira da cama um vidro dos grandes novinho de Biotônico Fontoura, cigarro de palha agora era coisa do passado, tinha sempre dois ou três maços novinhos, e com filtro. Comprou roupa nova, calçado novo, e ainda tinha algum dinheiro guardado com a vó. Finalmente trabalhava “seriamente.” Salvo algumas poucas vezes que a Dona Dita nos acompanhava ao pomar, e o meio cento então era meio cento mesmo, ademais o lucro era certo. Vendíamos laranjas pelas ruas, de porta em porta,  pelo comércio, nos pontos de ônibus, canchas de bocha, campos de futebol, sempre com um belo lucro a nos acompanhar.Agora sim, estávamos indo bem..
                           Num domingo, havia um grande torneio de futebol  na cidade, e o povo da vizinhança se reuniu, então nesse dia de boas certas vendas o Miguelão superou todas as expectativas no pomar. Foi até a casa da Dona Dita e dobrou o pedido.
_ Dona Venedita, hoje eu quero um cento de laranjas. Hoje a venda vai ser boa. Hoje quero um cento. Muito bem, para apanhar um cento o Miguelão com suas trapalhadas e com minha ajuda sem dúvida ia demorar mais que o costumeiro. Fomos bem cedo, a Dona Dita ainda se levantava da cama, com o rosto molhado, como quem acabara de lavá-lo, antes do primeiro cafezinho da manhã, e nos mandou direto ao pomar, como quem se livrava de um peso àquela hora da manhã. Fomos ao pomar, eu subia nas laranjeiras mais altas  enquanto o Miguelão  chacoalhava os galhos mais baixos. O chão se enchia de laranjas, e ele  desesperadamente enchia o saco e jogava as frutas para o outro lado da cerca. Depois calmamente, ele com um saco bem mais cheio e eu com outro mais leve, comparecemos à presença da Dona Dita para a contagem e o pagamento.
                    O outro lado da cerca era um caos de laranjas esparramadas por todos os lados, que a minha curiosidade de criança fez contar uma a uma: Eram mais de mil laranjas surupiadas num só dia.
                 Mas a coisa não era só safadeza, pelo contrário, tínhamos nosso talento nessa empreitada. Acontece que as laranjas da Dona Dita eram rejeitadas geralmente por estarem cobertas de pulgões. Quem já viveu na roça sabe que esses pulgões não ofendem a fruta em seu sabor, mas se limitam a cobrir toda a casca da laranja dando-lhe um aspecto de doentia, e tirando-lhe qualquer atrativo ao olhar. Tanto as laranjas compradas da Dona Dita como as lançadas através da cerca tinham essa característica. Aí então vinha um trabalho árduo. Num grande tanque cheio d’água despejávamos as laranjas e com uma bucha esfregávamos uma a uma, até que saísse o último pulgão. Resultado:- Por debaixo daquela camada de pulgão se escondia uma laranja amarelinha de aparência ímpar, já que não recebera o sol diretamente na casca, e de um sabor inigualável, dessa forma as donas de casa passaram a dar preferência às nossas laranjas. 
                   Mais tarde, eu não me lembro bem, qual o estopim que detonou o fim da venda de laranjas. Talvez a freguesia tenha se abarrotado de tanta laranja; ou o Miguelão tenha perdido o ímpeto pelas vendas, na mesma velocidade que se empolgara com elas. Além disso deve ter havido o dedo da Dona Dita, que com certeza soube de nosso sucesso e passou a nos acompanhar mais de perto nas colheitas, até que sem que nos déssemos bem conta das coisas não éramos mais vendedores de laranjas.  

                            Finalmente, após uma longa e quase interminável espera, quando muita gente já não acreditava mais, a luz elétrica acendeu em Paranapuã, e para nós, já tão cansados da constante escuridão, essa era a 8ª maravilha do mundo. Imediatamente surgiram os primeiros aparelhos eletrodomésticos, e a primeira providência lá em casa foi a aquisição de uma geladeira novinha. Era uma festa lá em casa, suco geladinho à toda hora, sorvete caseiro, doces gelados, bolos; e prá variar um pouco, a cada instante havia um irmão ou irmã a fim de saborear uma água bem geladinha. Ah! Mas como essa festa de luz e geladeira durou pouco, logo em seguida, questão de dias ou meses nos mudamos para a chácara, que embora se localizasse dentro do perímetro urbano da cidade, ainda não era alcançada pela fileira de postes que levava a luz, que parava a cerca de uns 500 metros dali. Voltamos à escuridão, às lamparinas fumacentas, às velas e às mariposas que consumiam óleo comestível, e a venerada geladeira foi para o canto de um dos quartos, transformada por meu pai em depósito de jornais, que chegavam sempre no dia seguinte.
                          Enquanto éramos crianças, as pessoas do nosso convívio eram todas relacionadas ao meio rural, assim como toda a comunidade, mas na casa da vila era diferente; agora na chácara experimentávamos como era realmente viver mais distante da zona urbana. Ali, além da criação de porcos, tínhamos gado, galinhas, cabritos e até cavalos. Eu já tinha oito ou nove anos e o Valdeir quase dois a menos, depois a Lúcia, que era bem criança e por ser a única filha mulher não participava muito das aventuras dos meninos, o Dani era ainda menor, e o Natinha só nasceu depois que já estávamos na chácara. Mas voltando ao assunto em pauta, tínhamos dois cavalos muito mansos, com os quais passeávamos pelos arredores sob a supervisão de um dos adultos, depois aos poucos fomos nos acostumando às cavalgadas, de maneira que meu pai já nos levava em pequenas empreitadas na busca de um bezerro, ou no transporte de uma rês que comprara ou vendera.

                       A cada semana era uma nova surpresa, como o nascimento de um bezerrinho, de um cabritinho, às vezes dezenas de pequeninos leitões ou uma bela ninhada de pintinhos. Vivíamos trepados nas árvores ou correndo pelo pasto afora, às vezes nos escondíamos no canavial ou andávamos descalços pelas enxurradas. 
                       O Barracão que por vezes servia como refúgio do Miguelão, em determinada época estava abarrotado com milho, amendoim e muita sacaria vazia. Esse era o habitat preferido dos ratos que se multiplicavam com abundância, constituindo uma verdadeira praga, já que perfuravam toda a sacaria à procura de alimento. Bem, eu o Valdeir, levados da breca, andávamos por ali sofismando, mexendo aqui, fuçando ali à procura de alguma coisa nova prá fazer, de vez em quando ouvíamos um porco gritar e saíamos em disparada pelo mangueirão; não raras vezes era o dia da castração, serviço confiado e executado com maestria pelo Sr. “Mané Capadô”. Do alto das tábuas da cerca do mangueirão observávamos a complicada castração das fêmeas que era feita através de um corte no meio da barriga para a retirada do pequeno ovário; e a interessante castração dos machos, que uma vez imobilizados eram colocados com os testículos em evidência. Então o Mané Capadô os espremia e com um corte certeiro do afiado canivete os fazia saltar fora enquanto o porco inutilmente esperneava e gemia.
                          Bem, mas agora voltemos aos ratos do barracão. Pulando de uma pilha à outra de sacaria, ou nos escondendo atrás das montanhas de sacas de milho, nós observávamos o movimento dos ratos, e percebemos que eles corriam por todos os lados, e acabavam por entrar sempre em um mesmo buraco no chão, em um canto do armazém ali bem próximo da cama do Miguelão. Vale lembrar que nesses dias ele não estava vivendo por ali, então de repente, como se saísse do nada, veio a idéia de caçar os ratos. Então toda uma estratégia foi montada, com o objetivo de pegarmos o maior número de ratos possível
                      Fizemos um corredor com pedaços de madeiras e tijolos, que cercava o buraco dos ratos e desembocava numa espécie de funil, que dava para um saco vazio, estrategicamente colocado. Depois despejamos um balde cheio de água buraco adentro. Mais de duas dúzias de ratos saíram em disparada do buraco e se encaçaparam no saco, que bem depressa foi fechado e levantado. Pronto, agora tínhamos uma bela “porcada” prá brincar. Entretanto os ratos não eram como os porcos, eram bichos arredios e ligeiros e com toda certeza não permaneceriam no chiqueiro de brinquedo. Nesse impasse o Valdeir teve a idéia  genial; brilhante idéia:                                                                                      _                    _  Vamos capá-los. Nem é preciso dizer que eu também gostei muito da idéia. Era fantástica. 
                      Com uma lâmina de barbear quebrada ao meio e presa a um palito de sorvete, improvisamos um excelente canivete, que mais era parecido com um bisturi; providenciamos um pequeno vidro com álcool para a desinfecção, aí então vinha a seleção dos ratos, claro não íamos ousar a ponto de capar as fêmeas, que imediatamente foram soltas, enquanto os machos selecionados para a capadura eram guardados. Depois eram pegos com o maior cuidado para  se evitar os dentes afiados, e exatamente como era feito com os porcos, nós repetíamos com os pobres dos ratos, que uma vez imobilizados tinham seus testículos decepados pelo “Valdeir capador”, que com a  maior maestria fazia a capação, depois a desinfecção com álcool e a soltura dos pobres animais agora estéreis.
                       Essa brincadeira era muito boa, e logo atraiu nossos colegas das redondezas, que se ajuntavam a nós nessa empreitada de capar os ratos. Era uma outra festa todos os dias, até que aos poucos não conseguíamos mais ratos machos para a castração, e por inúmeras vezes acabávamos por capturar ratos já capados. Nem me lembro bem se os ratos desapareceram ali do barracão, entretanto caso isso tenha acontecido, não tenho a menor dúvida de que isso se deu devido ao serviço de esterilização que sem saber prestamos.     

                         De certa feita, o Miguelão que estava sempre por alí, não apareceu o dia todo. Bem à tardinha surgiu todo sujo, suado, com ares de cansado, e logo foi me colocando a par das novidades:
                         _ Albertinho, hoje fui “trabaiá, fui catá argodom” que traduzindo, quer dizer que fora trabalhar na colheita de algodão, no Sítio do Zé Paraiba. E tem uma coisa Albertinho, amanhã você também vai; já conversei com o patrão ele concordou, amanhã você vai trabalhar comigo.
                        No dia seguinte, pela manhã minha mãe preparou as marmitas com o almoço, uma garrafinha cheia de café, e lá fomos nós pela estrada afora rumo ao novo trabalho. A labuta começava bem cedinho, logo ao amanhecer,  mas ao amanhecer o Miguelão ainda se aquecia embaixo do cobertor, de maneira que só chegamos ao serviço por volta das oito horas, quando o restante dos trabalhadores já se preparavam para o almoço.Mas por ali todos conheciam muito bem o Miguelão e não davam a menor importância ao atraso do companheiro de serviço. Primeiro porque o trabalho era remunerado conforme a produção de cada um, e principalmente porque a partir desse momento a colheita deixava de ser uma tarefa monótona e rotineira. Dessa forma ele era recebido com alegria por todos, que imediatamente passavam a provocá-lo para que soltasse uma de suas pataquadas.
                        Ele apanhava o seu balaio e se misturava aos demais trabalhadores onde por 10 ou 15 minutos trabalhava em silêncio. Depois parava se punha a meditar, tirava o galho de arruda do bolso, esfregava na testa, mastigava um dente de alho, acendia o cigarro de palha, dava umas baforadas e se punha a cantar velhas canções sertanejas. Nunca cantava uma música até o fim já que até nesse pormenor montava um verdadeiro teatro. Quase sempre vinha com trechos de canções muito tristes, bem a gosto do povo caipira, cheias de desenganos de tragédias e traições e nesse teatro montado no meio da roça ele começava cantando, depois declamava trechos e quase sempre interrompia a apresentação para fazer comentários sobre a tragédia contida na  

letra, que ainda segundo ele era sempre um fato verdadeiro, acontecido em locais e datas que conhecia bem e transformado em música. Quando cansado da representação fazia menção de retornar ao trabalho choviam pedidos para que continuasse cantando.
                   _No, no, no, no no posso mais cantar. Senão não trabalho. Preciso trabalhar, ainda não apanhei algodão nenhum.
                   _ Canta Migué, gritava alguém, canta a música do Ferreirinha, que eu te dou um cruzeiro. Pronto a história já era outra, o negócio começava a dar certo. 
                    Tudo se repetia, cantava um pedaço, parava para comentar a morte do Ferreirinha, a coragem do peão, a destreza do animal, etc. O Miguelão transformava uma simples canção sertaneja num drama todo romanceado e cheio de nuances.
                    Os trabalhadores não se importavam com nada, queriam era tornar o trabalho mais alegre e divertido, e nada melhor do que manter o Miguelão cantando, sempre em troca de um cruzeiro ou de um maço de cigarros. As músicas se sucediam: Osvaldo e Clarice, Rio Preto, Chico Mineiro, Mula Preta entre tantas outras, porém uma delas era muito solicitada até porque o Miguelão particularmente gostava muito de cantá-la, era o Canarinho Cantador do Teixeirinha, então ele abria o peito com toda a força dos pulmões, como sempre, trocando os versos, invertendo as frases e inserindo comentário, mas ao final da apresentação o público se manifestava com palmas e mais palmas.
                     De repente vinha um pedido lá de longe:
                     - Migué, canta o Coração de Luto.
                     - NO, no, no, no, de jeito nenhum. Essa não. Essa eu não canto de jeito nenhum. É muito triste. Essa eu não canto.
                    Por fim o próprio patrão que também estava envolvido na brincadeira, acabava por fazer um proposta:
                    - Migué, faz o seguinte, para com a colheita de  

algodão, e fica só cantando prá gente (até mesmo porque já sabia de dali não sairia mesmo muito trabalho), à tarde eu te pago cinco cruzeiros ( mais ou menos o correspondente a meio dia de serviço)
                     - É macho. Esse é macho. Esse é homem. É macho.
                     - Pronto o acordo estava selado, e o show era garantido.

                     Enquanto estávamos morando na chácara, quase sempre quando desembarcava em Paranapuã era ali que o Miguelão se hospedava, já que o vô Marcello e a vó Maria, agora sozinhos na vila, já não tinham muita paciência com ele. Isso aconteceu por uns tres anos eu acredito, até que as coisas começaram a ficar  cada vez mais difíceis para nossa família. Sem que se pudesse fazer nada, de um dia para o outro a porcada foi contaminada com peste suína, que como um vendaval varreu dos chiqueiros desde leitões até os maiores reprodutores. Lembro que meu pai mandou abrir uma vala ao lado do mangueirão, e um a um foi sacrificando os porcos para depois enterrá-los. Os barracões, os criadouros e mangueirões de repente estavam limpos. Meu pai ainda tentou reerguer as finanças migrando para outros negócios, mas de nada adiantou. Vendeu-se o caminhão, o jipe, e finalmente a única solução foi vender a chácara. Então nos mudamos novamente para a vila em uma pequena casa de madeira, que o vô Marcello geralmente cedia a um dos empregados. Ali nosso convívio com o Miguelão diminuiu bastante já que não tínhamos acomodações para ele, de forma que voltou a ocupar um cantinho de um dos barracões da máquina de arroz. Nessa casinha de madeira nasceu o caçula da família, o pequenino Samuel, que carinhosamene acabou apelidado por todos na família de “Pê”.
Isso por uma razão até interessante. Quando bem pequeno, minha mão tinha o hábito de contar às crianças histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo, e numa dessas histórias os personagens se comunicavam na linguagem do “p”, isto é colocando sempre o “p” diante das letras, assim para falar Samuel dizíamos:”Pesapemupeel” e assim por diante. Brincávamos muito com ele ainda no berço falando na linguagem do “p”, e ele ria muito, Então era: Pemepeu pelinpedipenho, pequer pechupepepeta, e assim por diante. Bom até hoje o Samuel, caçula da família é o Pê” e estamos conversados.   

                           Por outro lado, eu e o Valdeir, agora já bem grandinhos (10 e 12 anos), nos juntávamos à molecada do local em intermináveis jogos de bola. E esses famosos joguinhos de bola faziam cada vez mais branquinhos os cabelos do vô Marcello, que sempre tivera severa aversão a qualquer tipo de prática esportiva, já que o trabalho árduo era a única atividade que julgava realmente necessária ao ser humano. Enquanto a criançada se reunia aos bandos no joguinho em um gramado bem em frente da máquina de arroz. Dessa maneira, as paredes dos prédios, antes branquinhas, agora ficavam completamente “carimbadas  belas inúmeras boladas, e o que era ainda pior: fazíamos das portas de ferro dos armazéns, as metas, os gols, então a cada gol marcado era uma verdadeira pancada que ecoava por todos os cantos do recinto. O  vô esbravejava, corria atrás da molecada com a cinta em punho, e às vezes até se apoderava da bola q eu por um descuido nosso, ou por um chute errado acabava dentro da máquina de arroz. Aí, a única solução era conseguirmos outra bola, entretanto o joguinho sempre continuava.  
                         Nesses intermináveis joguinhos de bola, uma figurinha sempre presente era nosso colega Mauricio Beguelini, filho do Sr. Sílvio Beguelini, o oveiro da vila (ai, ai, ai, ai, agora vou ter que explicar o que era oveiro ?). O Maurício se fez muito amigo nosso, sempre frequentando a nossa casa, de forma que logo recebeu da turminha o seu apelido: Formigão.
Nesse particular episódio, me lembro do Miguelão alí à beira do campinho gritando com o Maurício:  _ Vai “saúva”, vai “saúva”, chuta “saúva”, ah ! saúva, você é muito ruim
Depois comentando o jogo comigo: _ Albertinho vocês perderam o jogo por causa do “Saúva”, o “Saúva” é muito ruim.
                          _Mas tio Migué, que saúva ?                                             _                        _ Ora Albertinho, aquele “tocandira”, o “cabo verde” o “sauvão”, filho do Sr. Silvio oveiro.

                      Tempos mais tarde, juntei algum dinheiro e comprei uma máquina fotográfica, marca Flika, que mais parecia uma caixa de sapatos preta com um furo no meio, sem flash, sem foco, sem nada. Então andava para cima e para baixo de máquina em punho fotografando tudo o que via pela frente, ou todos que se apresentavam, com uma única exceção: O Miguelão, que se recusava terminantemente  a servir de alvo para qualquer fotografia. Por mais que eu tentasse, até com a ajuda de outras pessoas, ele se esquivava, corria, se escondia, mas não se deixava fotografar.
                       Finalmente, numa noite, inesperadamente, depois de nos recolhermos, o Miguelão vinha gritando pela rua deserta:
                          _ Cidinha, oh! Cidinha, acorda. Acorda Cidinha. Meu chama o seu filho. Me chama o seu filho, pelo amor de Deus. Minha mãe abriu a janela, não muito contente:
                          _ Cala a boca tio Migué. Que gritaria é essa a esta hora ? Que é isso tio Migué ?
                          _ Me chama o teu filho depressa.
                          _ Que filho tio Migué ? Tá todo mundo dormindo. Eu não vou acordar ninguém. Vai dormir também, vai...
                          _No, no, no, no Cidinha, me acorda depressa o teu filho Alberto.
                          _Que Alberto tio Migué ? Eu não tenho nenhum filho chamado Alberto.
                          _Tem sim, o Albertinho. O Albertinho retratista. Me chama depressa o Albertinho retratista, que eu preciso tirar uma fotografia agora mesmo.
                          _ Mas prá quê tio Migué ? Prá que uma fotografia a esta hora ?

                         Até hoje a minha mãe não me chamou para tirar a tal fotografia, e até hoje eu não soube porque o Miguelão precisava dela.  

                             Nessa época eu o Valdeir ainda frequentávamos a igreja evangélica com meu pai e minha mãe. Estávamos  sempre nos cultos, nas reuniões de jovens, etc., e às vezes quando estávamos num dos cultos noturnos, no meio do serviço adentrava pela igreja o Miguelão. Claro que este ambiente não era o melhor para brincadeiras, e muito menos para risos ou palhaçadas, entretanto o Miguelão era irreverente, e alem disso ele tinha convicção de seu comportamento, sua maneira de agir era absolutamente normal. Só quem achava muito divertida a presença dele ali eram as crianças, que imediatamente se agitavam e eram sistematicamente repreendidas pelos auxiliares (Paco, João Ginês e Luiz Domini entre outros), com croques na cabeça e puxões de orelha. Bem, ele aparecia ali pelo meio do culto, geralmente à hora dos testemunhos, quando a igreja estava em silêncio sob o comando do irmão Jorge Tomáz. Já à porta de entrada anunciava a todos a sua chegada, saudando em voz alta o condutor que estava à frente no púlpito:
                            _A paz de Deus irmão Jorge!
                            Pronto. Todos ali estavam informados de sua presença, depois se sucediam diversas trapalhadas. Na hora da oração, que era feita de joelhos, ele permanecia sentado, às vezes com um dos braços levantado e fazendo mil caretas. Quando todos silenciavam ele orava sozinho em voz alta:
                            Glória, glória, glória, Santo, Santo, Santo. Aleluia !
                            Felizmente nunca permanecia por muito tempo na igreja, geralmente depois de 10 ou 15 minutos ia embora. Então o irmão Jorge chamava a atenção da irmandade:
                           _ Clamem a Deus irmãos. Clamem a Deus e permaneçam em comunhão. O culto voltava  ao normal.  

                      No início do ano de 1969 a família Marcilino Duran embarcava a mudança com destino a São Caetano do Sul, à procura de melhores condições de vida. Eram bem comum já há alguns anos as famílias em situação financeira difícil no interior de São Paulo migrarem para as cidades da grande São Paulo, onde nessa época era maior a oferta de empregos. Mera ilusão. Um ano depois, sem nenhum emprego e com uma considerável piora financeira estávamos de volta a Paranapuã, e meu estava de volta à máquina de beneficiar arroz, da qual recentemente fora proprietário e para onde retornava praticamente como empregado, com a única vantagem de ser o filho do dono. Agora nessa nova fase eu e o Valdeir tivemos nosso real contato com o trabalho, que até aqui era limitado a pequenos bicos, como engraxar sapatos, vender laranjas e outras pequenas vendas ambulantes. Agora estávamos  ajudando na máquina de arroz onde ficamos responsáveis pelo ensaque do farelo.
                     Esse farelo era extraído na primeira fase do beneficio do arroz, que após desensacado subia por um tubo condutor e caia nos descascadores que eram formados por duas pedras circulares como dois esmerilhos, que retiravam a palha do arroz. Dali o arroz integral seguia para os brunidores, que lixava os grãos deixando-os branquinhos, desse processo de lixar os grãos saia o farelo, que como dissemos era utilizado na alimentação de animais.
                     Na verdade eram dois os tipos de farelos produzidos, o primeiro era o farelo grosso, composto em sua maioria por resíduos da palha de arroz, obtido quando o arroz era descascado, e outro, bem mais nutritivo e muito mais procurado era esse farelo mais fino, tirado do processo de lixar o arroz.

                              O lado “bondoso” do Miguelão, sempre causava problemas a todos, pois até mesmo na  bondade ele era inconsequente, não tinha limites. Todos que encontrasse pela frente que aparentasse precisar de ajuda lá estava ele para ajudar (desde que não fosse necessário nenhum esforço físico). Fosse necessário que carregasse um tijolo para ajudar alguém ele sempre estava “muito doente”, se recuperando de um “problema na coluna” de uma “colerina” (desinteria e vômito, ou seja, virose), e ia se ausentando de fininho. Mas quando era para pedir ajuda a uma terceira pessoa ele era sempre solidário. E foi numa dessas incursões pela assistência social que ele apareceu já bem à noite em casa com um andarilho, muito maltrapilho, muito mal cheiroso, de cabelos longos e   “esbudegados” com um saco de quinquinharias às costas.
Chegou com o estranho cheio de cerimônias: -Entra irmão, entra. A minha sobrinha Cidinha já vai lhe dar uma boa janta, um bom copo de Ki-suco, depois te arrumo um lugar para dormir no meu barraco. Minha mãe quando viu a cena colocou as duas mãos na cabeça.
                           -Tio Migué, o que é isso?
                           -Como Cidinha, não  vendo? É um pobre coitado que só precisa de um prato de comida e uma cama para dormir. Só isso.
                           -Tio Migué, já é tarde, eu lavei a louça, guardei os pratos, e a comida que sobrou eu dei pro cachorro. Não tem mais comida.
                           -O quêêêê.... Cidinha? Não tem comida? E você não tem coração? Põe uma água esquentar e faz depressa uma panela de arroz para esse pobre coitado.

O pobre homem sentado ali em frente sem entender nada, possivelmente bêbado, não dizia nada. Ou melhor, às vezes resmungava palavras incompreensíveis, e o Miguelão insistia:  -Daqui ele não sai sem janta. Ah não sai.
                              Minha mãe já aborrecida com todo o   estardalhaço tomou uma decisão. Foi ao fogão, abriu o forninho e tirou um belo prato de comida, bem grande, coberto por um bife do tamanho do prato.
                              - Ta aqui tio Migué. O senhor insistiu tanto que fiquei com pena do coitado.ç Deixa ele comer à vontade.
                             O Miguelão dava pulos de alegria. Olhava para o mendigo com os olhos brilhando:  - Eu não e falei? Não te falei? Ela é uma santa. Uma santa. Não ia te deixar com fome, eu tinha certeza...Enquanto isso o coitado se enterrou no prato munido de uma colher e com o bife espetado nas unhas, muito parecido com um lobo faminto. Como resultado não deixou um só grãozinho de  arroz. Mas o Miguelão ainda não estava satisfeito.
                             -Cidinha e o café? Dá um cafezinho pro irmão. Minha mãe fez mais esse sacrifício. O homem comeu tanto e ficou tão satisfeito que até recusou a pousada. Barriga cheia, passou a mão em seu saco de pertences e foi embora sem dizer uma palavra sequer. O Miguelão ficou por ali. Sentou no caixão do poço, fumou um cigarro de palha, e depois chamou pela minha mãe.
                              -Bom Cidinha, agora que o homem foi embora, e que tudo está em paz acho que vou jantar. Dá meu prato de comida.
                              -Prato de comida tio Migué? O que é 

que o senhor acha que seu irmão comeu? Era a única comida que tinha em casa.
                             -O que Cidinha? Você teve a coragem de dar a minha comida a um vagabundo? A um desgraçado qualquer? Um Judas, traidor?
                             Resmungou, resmungou e foi dormir sem jantar.
                             Às vezes e se acalmava um pouco e passava um período maior em um só lugar, ora em Paranapuã ora em General Salgado, e às vezes  pelo Paraná, onde raramente ia.Mas de repente não parava em lugar nenhum, parecia mais inquieto, mais violento, de forma que ninguém o suportava por muito tempo. Ainda os irmãos de sangue pareciam fazer um esforço extra para conviver com ele, mas o relacionamento com os cunhados e cunhadas era bem mais difícil, desde o vô Marcello, tio Zé Pinha e a tia esposa do tio Zeíco. Dessa maneira, ia embora de Paranapuã, e poucos dias depois estava de volta para mais um desespero do vô Marcello, que mais uma vez levava as duas mãos à cabeça.
                              Sentado no caixão do poço, onde preparava mais um cigarro de palha, tentava explicar à minha mãe a razão de mais um regresso precoce.
                              -Sabe Cidinha, eu até que me entendi bem com meu irmão Zeíco, mas o problema foi com a tua tia. Eu não vinha me dando muito bem com ela, e nem com o meu cunhado Zé Pinha.
                              -Não tio Migué, não. Dessa vez eu não acreditar nas suas parolices. O senhor deve ter aprontado alguma boa trapalhada por lá, e puseram o senhor prá correr bem depressa..

                             -Cidinha você sabe que eu não sou homem de contar mentira. “quero ficar cego” se fiz alguma coisa errada. Foi implicância mesmo.
                             -Não, não tio Migué, essa história está mal contada. O senhor com essa mania de perseguir as moças, de querer arrumar um casamento de qualquer jeito, deve ter  fugido de alguém que lhe jurou de morte. Só pode ser isso.
                            -Cidinha! (já falava bem alto) você sabe que não foi isso. “Quero ficar surdo e mudo, quero ficar surdo e mudo” se fiz alguma coisa errada.
                             -Mas tio Migué, se o senhor foi um santo por lá, porque um santo foi mandado embora tão depressa?
                             -”Quero ficar surdo e mudo, quero ficar surdo, mudo e paralítico”, berrava.
                              -Não, não tio Migué. Não dá prá acreditar. Nós vamos tirar isso a limpo. Deixa vir alguém de General Salgado passear aqui, e vamos ficar sabendo de tudo. A verdade vai aparecer. Ah se vai.
                               Então ele apelava para o argumento máximo de defesa.
                               -Bom Cidinha, já disse que não fiz nada de errado. Já jurei> “Quero ficar cego, surdo, mudo e paralítico” e tem mais, se fiz alguma coisa errada “quero que me cape de macete. Me cape de macete” pronto.
                               Assunto encerrado.

                     _ “´Mísseráve, ingrata, mujer sem coraçõn, ladra, ladrona, madalena arrependida, misseráve !”
                     Era uma manhã de domingo, bem cedinho, um domingo gelado, um friiiio, mas um baita frio desses de cortar os ossos, e o Miguelão esbravejava em frente à janela de nossa casa:
                     - Misseráve, Madalena !
                     Era muito estranho, o Miguelão, àquela hora já de pé ? ( Era entre seis e sete da manhã. Domingo... Frio...), algo de muito errado por certo estava acontecendo. Minha mãe se animou a sair debaixo do cobertor e abriu a janela. Lá estava ele resmungando (ou melhor, gritando) sozinho.
                      Tio Migué, o que houve ? O senhor já viu que horas são ? E ainda com um frio desses? O que houve homem ? O que houve ?
                       _ A velha, Cidinha, a misseráve da velha. A velha me roubou.
                       _ Que velha tio Migué ? Que velha te roubou ?
                       _ A velha, Cidinha... A velha Verenciana, essa que anda aí pela rua, essa é a velha que me roubou.
                       _ Mas tio Migué, a velha, afinal lhe roubou o quê?
                       _ Roubou Cidinha, a velha me roubou um par de meias, meu casaco, e meu vidro de Biotônico Fontoura, me roubou. No, no, no, no, o Biotônico no, no, esse ela bebeu inteirinho como se fosse café.

                       _ Mas tio Migué, eu não estou entendendo nada. Quer dizer que essa velha entrou no seu quartinho, roubou as suas coisas, e ainda por cima bebeu o seu remédio ? Como ?
                       ( Cabe aqui uma explicação sobre essa nova personagem. A Dona Verenciana era uma senhora de idade já bem avançada, talvez com seus 65 ou 70 anos, que ninguém ali 

podia precisar, mãe do Patrocínio, um amigo nosso, morador alí das proximidades, que sofria de graves problemas mentais; bem maiores que os do Miguelão; de maneira que ela saia pelas ruas à qualquer hora, sem rumo, com as roupas sujas, despenteada, até que alguém mais solícito, de bom coração a socorresse e a levasse de volta prá casa.).
                     _ Como tio Migué ? Como ela entrou em seus redutos e conseguiu lhe roubar ? E ainda por cima beber todo o seu remédio ?
                     _ Cidinha... Cidinha, você parece que não entende. A coitada da velha não assaltou o meu quarto como uma ladra, não Cidinha, no, no, no, no. Imagine Cidinha, que eu mesmo levei ela prá lá.
                     _O quê ? Será que eu ouvi direito ? Quer dizer que o senhor teve a coragem de levar a pobre velha, para iludí-la, e depois dormir com ela ?
                     _ No, no, no, no, Cidinha, Deus me livre. Cruz credo, Ave Maria, não é nada disso, parece que você não entende nada. Não é nada disso que você está pensando Cidinha. Aparecida. Aparecida Caffer, no suspeite de mi. Alterando a vóz. No suspeite de mi. Vou contar:
                      Ontem de noite com todo esse frio, fui dar uma volta, e encontrei essa pobre mulher perambulando sozinha pelas ruas, toda suja, descabelada, desagasalhada, coitada.
Me cortou o coração. Era uma pobre velha, pobrezinha, ali sozinha no meio da rua. Então eu peguei ela pelo braço e falei:
                       _ Dona Verenciana, vem comigo, eu vou lhe socorrer. Vem comigo, vamos para o meu barraco, que eu vou lhe agasalhar. Cidinha, pobre da velha, a coitada tremia feito  uma vara verde, de frio, tava geladinha, então eu dei prá ela o meu paletó. Depois deitei ela na minha cama. Coitadinha, tava com os pés que era um gelo, mais pareciam dois picolés de tão frios; então calcei neles o meu melhor par de meias, que achei ali no chão bem sequinho.

                         _ E depois se deitou ao lado da donzela, não é tio Migué ?
                         _ Ah, ah, ah, ah, no, no, no, no, Cidinha, no, no. Eu forrei o chão com a sacaria vazia e fiz uma cama para mim, então deitei ali perto da velha. Acontece que a pobrezinha tava com muita tosse, eu ali, sem saber o que fazer, dei prá coitada uma boa colherada de Biotônico Fontoura. Não é que a velhinha se esquentou ?  Se esquentou e pegou no sono, e eu cansado da luta pequei no sono também...
Ai. Ai. Ai. Cidinha, a hora que me acordei a velha tinha sumido. Sumiu com minhas meias, com meu casaco de frio, e o meu Biotônico Cidinha, tinha mais de meio vidro. Tava ali na cabeceira, vazio, vaziozinho, sem nem uma gota.
                        _Essa história acabou rendendo muitas gozações, e por um longo espaço de tempo. Sempre que era lembrada, provocávamos o Miguelão para que a repetisse com maiores detalhes. Geralmente quando estava num momento descontraído, ele participava conosco da brincadeira:
                       _ Ah, ah, ah, ah, Albetinho. Imagina que a tua mãe, a tua mãe Cidinha. Aparecida Caffer, acreditou que eu tinha levado a coitada da velha para o meu quarto, para abusar da pobrezinha... Ah, ah, ah, ah,  já pensou Albertinho ? Eu ? Eu ? Fazer uma coisa dessas com a pobre infeliz ?
Ah, ah, ah, ah, já pensou ?
                        A minha mãe que as vezes ouvia tudo provocava outra vez:
                        _ Mas tio Migué, o senhor também é velho...
                        _ Bom Cidinha, eu já não sou nenhum menino, mas também não sou tão velho assim....
                        A vida continuava numa Paranapuã, que não sabíamos o que era, e que não sabia como moldar as nossas pequenas vidas alheias ao futuro.

                      E que o próprios personagens que protagonizavam conosco essa  história não tinham nenhuma noção do que poderiam representar no futuro para esses pobres passageiros desse pequeno pedaço de tempo e de espaço, e dessa forma haviam aqueles que de alguma maneira tinham o mínimo de respeito pelo Miguelão, que levavam suas birutices na brincadeira, sem lhe causar aborrecimentos. Por outro lado haviam aqueles que faziam galhofas, criavam situações que o humilhassem, e até arranjavam um jeito de tomar o seu “suado” dinheirinho. Todos eram conhecedores de suas deficiências, e de seu raciocínio vulgar e errante, como o de qualquer criança em sua mais tenra infância. Ainda assim haviam pessoas sem escrúpulos, capazes de provocá-lo apenas com o único objetivo de se divertirem, e além de tudo tirarem proveito disso.
                   Houve uma época em que o Miguelão era viciado em jogo de bocha. Para conseguir dinheiro para o jogo ele fazia de tudo, desde trabalhar duro rachando lenha para os fogões do vilarejo, até suas violentas coletas atacando os viajantes do final da rua, e trazia para ali seu precioso dinheirinho, duramente conquistado, onde o esperavam pessoas do tipo “não quero nem saber; jogou tem que pagar”, cujos nomes vou poupar para não fugir do objetivo inicial do livro, e da história.
Essas pessoas, primeiro o provocavam para o jogo, depois se valiam de suas artimanhas contra uma inocente ingenuidade, e lhe tomavam até o último centavo. Mas o Miguelão não era bobo, e percebia que fora roubado, então voltava para a casa feito uma fera; xingando todos até a quinta geração, o que deixava extremamente furioso o vô Marcello.
                      Diante de tantos transtornos criados no jogo de bocha, o Miguelão foi proibido pelo vô Marcello de comparecer à cancha. Os frequentadores foram avisados, e ficou bem claro, que caso ainda insistisse a polícia seria chamada, como única alternativa para atemorizá-lo. Essa polícia era constituida por dois praças, o Vanderlei, baixinho, gordinho, perto de se 

se aposentar, que já não queria mais se meter em encrencas, e passava seus dias pelos bares tomando cachaça com limão e batendo papo furado com os desocupados, o outro era o Tervi, mais severo, entretanto sem muito rigor, diante da própria sonolência do lugar. De  maneira que quando o Miguelão estava no jogo e alguém gritava: - Lá vem a polícia. O pobre coitado saía em disparada pelos fundos da cancha, enquanto todos ali riam à vontade. 
                      Por outro lado haviam pessoas que gostavam dele, e uma pessoa que segundo me lembro parecia lhe querer bem era o velho Salvador Carrasco. Essa família viera para Paranapuã na mesma época em que viera o vô Marcello, e era bem mais numerosa, tendo se estabelecido numa fazenda bem pegada à pequena  vila de Paranapuã, tão dentro da área urbana que atualmente boa parte da cidade fica dentro da área que outrora fora a fazenda dos Carrasco.
                      O velho Salvador, já sexagenário, tinha o comportamento de um verdadeiro coronel dessas bandas; sempre de botas compridas, ora à cavalo, ora dirigindo seu jeep para cima e para baixo, fiscalizando tudo o que se passava na fazenda. 
                      Ainda nem sonhávamos com leite em saquinhos ou em caixinhas, então todo o povo do pequeno lugar fazia fila pela manhã na varanda da fazenda onde era vendido o leite. 
                      A maneira como esse leite era comercializado, até hoje me causa espanto. A velha senhora Carrasco, esposa do senhor Salvador, também sexagenária, com um canecão à mão, que era uma lata de óleo vegetal dessas da boca quadrada, com uma asa de lata, tirava o leite do latão e ia enchendo as vazilhas que lhe eram apresentadas. A medida era o canecão de um  litro. Assim ia enchendo garrafas de vidro, panelas, tijelas, e tantos outros vazilhames. Ocorre que a pobre senhora sofria do Mal de Alzeimer, e por exemplo, enquanto enchia uma dessas garrafas de vidro, devido a tremedeira, mais da metade do leite, lhe escorria pelas mãos, depois pelo cotovelo, e acabava 

dentro do latão que viera do curral, sendo depois servido novamente em outro vasilhame do seguinte na fila. Assim todos levavam o leite que passava pelo braço e pelo cotovelo da senhora Carrasco.
                         Mas voltemos à história original; o velho Salvador, com quem o Miguelão mantinha uma interminável negociação para a limpeza dos aceros junto das cercas da fazenda. Um serviço irrealizável para o Miguelão sozinho, mas que ele acreditava ser capaz de executar. ( Uma dúzia de homens talvez levasse semanas nessa empreitada.) Assim passavam dias e dias comentando sobre o serviço, acertando detalhes, ajustando o preço, etc. Depois de tudo bem combinado, só faltava dar início à obra, então o Miguelão arrumava mil desculpas para adiar a empreita, por fim acabava se pondo de viagem para General Salgado e tudo ficava esquecido por um bom tempo. Mas enquanto duravam as negociações, todos os dias pela manhã, la ia o Miguelão com seu caneco de dois litros rumo à sede da fazenda, de onde trazia seu leite fresquinho, e de graça.
                        O Oscar Tamássio era genro do velho Salvador Carrasco, e detinha a fama de ser, depois do João Morais, o sujeito mais mentiroso do local. Em certa ocasião o velho andava adoentado, bem mal, já que era diabético e hipertenso, além de sofrer outros pequenos males. Num domingo, bem cedo, chovia e fazia muito frio, enquanto os primeiros frequeses dos bares aqueciam a garganta com a primeira branquinha que substituia o café da manhã, o Oscar descia apressado pela avenida, segurando o chapéu na cabeça por causa do vento, em direção à sede da fazenda. Do outro lado da rua logo veio o convite de dentro do bar:
                        _ O Oscar, vem tomar uma com a gente. E como ele continuava a andar cada vez mais apressado, o convite foi reforçado.
                       _ Oscar, vem tomar uma branquinha e conta 

uma mentira para nós. O Oscar estancou o passo, olhou sério para dentro do bar e disparou severo:
                    _ Cambada de cachaceiros irresponsáveis.O pobre do velho Carrasco acaba de morrer lá em Jales no hospital, e eu aqui todo molhado, apressado para receber o corpo lá na fazenda, e ainda querem que eu para prá beber ? E seguiu apressado avenida abaixo. Todos os que estavam no bar seguiram atrás. Um pouco mais abaixo na esquina seguinte, outro bar. As pessoas lá dentro viram o Oscar apressado, debaixo de chuva e logo atrás aquele grupo de homens acompanhando também apressado. Antes que alguém perguntasse, um do grupo já gritou:
                  _O velho Carrasco morreu, vamos para lá. O grupo aumentou. No terceiro bar a mesma coisa. Pessoas que passavam pelas imediações também se juntaram e la foram rumo à sede da fazenda. O Oscar que se adiantara com relação ao restante das pessoas logo entrou pela porteira da fazenda, e dali a uns dois ou ter minutos aquele grupo de cerca de vinte e cinco homens apressados chegavam à mesma porteira. Quando fizeram a volta pelo quintal a adentraram pela varanda lá estava o velho Salvador Carrasco, sentado em sua cadeira de balanço, baforando calmamente o seu cigarro de palha. O Oscar deitado no chão rolava de tanto rir a apontava para o grupo desapontado e boquiaberto:
                        _ Não me pediram para contar uma mentira ? Não pediram ?

                           A vó andava adoentada, e Miguelão causava muitos problemas causando-lhe sucessivos desgostos, pois embora quase sempre ele fosse uma pessoa calma de boa índole, às vezes por um certo período ficava ainda mais transtornado, reclamando muito, ofendendo as pessoas, e até às vezes ameaçava fazer uso da violência. Diante disso a tia Emília, que desde que se casara residia em Jales, arranjou um pequeno cômodo nos fundos de sua casa a acolheu ali o Miguelão. Agora ele iria conviver com a família Rossafa e sem dúvida por ali também iria aprontar algumas das suas. Um dos hábitos dos irmãos Rossafa, era nos finais de tarde ou nos fins de semana passarem um tempinho no jogo de bocha. Para o Miguelão isso foi o mélzinho na chupeta. Já pensou ? Aquilo que o vô Marcello mais  lhe proibia, mais lhe censurava, era agora o passatempo preferido do dono da casa, que ainda lhe convidava a participar. Ele, que já era viciado no jogo agora endoidou de vez. 
                      Foi numa dessas rodadas de bocha nos fins de semana que o Miguelão conheceu o proprietário da Padaria Progresso em Jales, o Sr. Osmar de Souza, que por sua vez imediatamente se simpatizou com ele, tornando-se aos poucos uma espécie de “padrinho” seu. Diariamente o Miguelão ia até a Padaria Progresso buscar de graça o seu pãozinho quentinho, e não raras vezes ainda era presenteado com um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. O preço de todos esses favores ? O Miguelão tinha que torcer para o Osmar de Souza no jogo de bocha, onde sempre estava envolvida uma pequena aposta, e sempre sobrava para ele algum trocadinho. De maneira que a gritaria era cada vez maior:
                      _É macho, é homem, esse é macho. E assim ia fazendo maior a diversão dos participantes do jogo.
                      Num certo dia o Osmar de Souza jogava com o Balim Rossafa, irmão do tio Angelim. O jogo foi ficando truncado e difícil, as apostas foram se acumulando, dobrando, multiplicando. A platéia acompanhava com interesse, e o Miguelão como sempre aos gritos, babava  correndo ao redor da cancha no maior desespero. Até que depois de vários desempates o jogo chegou ao fim. O Balim, que acabara perdendo, pegou o talão de cheques e preencheu uma folha com o valor da aposta, passando-o ao Osmar de Souza: duzentos  cruzeiros (mais ou menos o equivalente hoje a duzentos  reais), e mais quarenta cruzeiros em dinheiro. O Osmar ao invés de guardar o cheque e o dinheiro, o entregou ao Miguelão como presente pela fanática torcida. Esse homem ficou maluco de vez. Gritava, pulava, babava, beijava o “padrinho”, se punha de joelhos, erguia os braços pro céu, chorava, sempre agitando o cheque no ar.
                 _ É meu pai. É meu pai. O Osmar de Souza agora é meu pai. Olha o cheque que me deu. É meu pai. E o beijava nas mãos e no rosto.
                 O Miguelão não tinha conta em banco, e nem documentos para sacar o cheque, que acabou sendo confiado à guarda da tia Emília, que se encarregou de trocá-lo através do tio Angelim.
                O que houve com o tal cheque, na verdade nunca ficou bem esclarecido, o que é certo é que o pobre Miguelão mais uma vez acabou sem o dinheirinho “suado” do jogo de bocha. Muitos anos mais tarde o tal cheque foi lembrado numa história que vem mais à frente.
                Menos de dois meses, foi o tempo que a tia Emília suportou a convivência com o Miguelão em sua casa; e o pior é que no seu retorno a Paranapuã, sempre com a velha valisa, os problemas com o jogo de bocha aumentaram, e além disso ele começou a falar com uma frequência cada vez maior que iria se casar com uma das moças da vizinhança, e passou a importunar a mulherada com essa história.
                                        É fácil compreender que o Miguelão não podia fazer um turismo muito longo em Jales, na casa da tia Emília. Acontece que ele com suas inesperadas, e até mesmo esperadas pataquices deixava a vó Maria cada vez mais desesperada, e nas visitas da tia Emília a vó reclamava muito, então não tinha outro jeito. Ele viera há muito pouco tempo de General Salgado, a Cidinha já não morava mais por aqui para carregar a cruz, então não tinha mais alternativa. Lá ia ele para Jales para uma curta temporada. Ali tinha o jogo de bocha, tinha o Osmar de Souza e o pessoal mais conhecido, que por algum tempo até se divertia com ele.
                       O grande problema é que a casa da tia Emília era formada quase que exclusivamente por mulheres. O tio Angelim Rossafa era o único homem da casa, depois a tia Emília a empregada da casa e as quatro meninas, todas menores. E ele era um tipo difícil de ser encarado pelas mulheres. Era porcalhão, quase nojento, conversava aos gritos e era cheio de manias estranhas, como colecionar pedrinhas nos bolsos, folhas de arbustos embaixo de um lenço amarrado sob o chapéu, dentes de alho, que mascava diante das pessoas, a irremovível obstinação de arranjar uma mulher. Assim a paciência se esgotava logo, não fossem duas coisas: Primeiro, a tia Emília era filha da vó Maria, e dela herdara uma coisa chamada bondade, que nada no mundo pode superar. Assim como a vó, ela tinha o dom de ser bondosa e de ser prestativa. Por isso compreendia e  suportava coisas que nós simples humanos comuns não percebemos. E alem disso o Miguelão era da família e também carregava consigo atrelada à sua insanidade, uma alma bondosa, um ser caridoso, que se comovia com as necessidades do próximo. Isso fazia dele a ira e o perdão quase que simultâneos.
                          Às vezes durante o jogo de bocha, o Miguelão torcia feito um louco (sem trocadilho), e os jogadores gratos de seu gesto mandavam que pegassem por suas contas uma bebida, ou um maço de cigarros. Logo ele respondia: No, no, no, beber eu não bebo, e cigarro já tenho um maço no bolso. Mas ia ao balcão e pegava por conta do oferecido uma cotuba quente e quatro ou cinco paçocas, que eram embrulhadas num papel de pão. Ali continuava por mais duas ou três horas, com a cotuba no chão e o pacote de paçocas debaixo do braço, se derretendo com o suor. Por fim ia embora em busca do almoço, e oferecia o “presente” para as meninas “Malena, Mali, Rosseli e Rossanchela” (em Miguelãones), vejam o que o tio trouxe para vocês, e exibia a cotuba quente e  as paçocas amassadas, derretidas  e úmidas de suor.


                 O vô Marcello como sempre procurava medidas práticas para resolver os problemas, e esse agora era um sério problema que se apresentava, pois as mães passaram a se preocupar com suas filhas diante das avançadas do Miguelão, que mais uma vez não tinha limites nem coerências. Todas as mulheres  desde os sete até os trinta, trinta e cinco anos eram candidatas a suas esposas. Então o vô chamou o meu pai e lhe expos aquilo que tinha em mente:
                   _Marcilino, esse homem vem dando cada vez mais trabalho, agora só fala em casamento, as mulheres da vizinhança andam com medo dele, e você sabe que isso é uma coisa perigosa mesmo. Você não acha que se a gente arranjar uma mulher para ele vai ser um bom negócio ? Quem sabe ele se acalma um pouco e deixa de perseguir as mocinhas por aí. Sabe, eu tive pensando... Tem essa coitada dessa mulher, a dona Guilhermina que vive pedindo ajuda de porta em porta... Sem familia, sem casa para morar. E se a gente conversasse com ela. A gente explica que arruma um cômodo bem limpinho, arruma uma cama de casal, compra um fogão, umas panelas, uns pratos, e põe os dois para viverem juntos. Nós fornecemos tudo o quanto precisarem, de cama, mesa e banho. E olha, eu te garanto que ainda sai barato. O que você acha ? Não é uma boa idéia ?
                    _O meu pai levou até a minha mãe a proposta do vô Marcello, que realmente parecia muito boa, e que a princípio parecia bem viável. Afinal não custava nada tentar, pouco se tinha a perder. A Dona Guilhermina com toda a certeza haveria de aceitar já que vivia muito necessitada de tudo, e afinal não é todo dia que aparece uma proposta de casamento dessas. Mas ainda faltava o principal: Colocar o sino no pescoço do gato. Quem iria falar com o Miguelão ? E mais, falar com muito jeito a fim de convencê-lo do excelente negócio proposto pelo vô. Concordaram que o mais adequado seria uma espécie de reunião, pois os três juntos teriam bem mais argumentos caso ele resistisse. Assim foi feito, os três reunidos, tudo ajustado, tudo arquitetado com detalhes, mandaram chamar o Miguelão, que chegou muito arredio com aquela formalidade toda, assim, se sentindo meio como cachorro que caiu de mudança e andou levando pontapés por todos os lados. Enfim chegou bem desconfiado de boa coisa não o esperava ali
                     _Fica tranqüilo tio Migué, minha mãe tratou de acalmá-lo, só temos boas notícias para o senhor. 
                     Então o vô Marcello tomou a conversa: 
                  _ Sabe Migué, você não pode mais viver sozinho, assim dessa maneira. Você precisa de uma companheira, uma mulher que te ampare, e que cuide de você. O Miguelão arregalou os olhos tentando entender o que isso significava, depois aos poucos como se começasse a compreender abriu o largo e desdentado sorriso; isso passou a todos a nítida impressão de que ele topara de imediato a idéia. O vô continuou:
                  _ Eu tive conversando com o Marcilino e com a Aparecida, e nós três chegamos à conclusão de que o casamento é o melhor prá você. Então nós vamos arranjar um cômodo bem melhor lá no fundo do armazém, vamos comprar um fogão, uma meia dúzia de pratos, panelas, uma cama de casal... O Miguelão mantinha o riso nos lábios mas não dizia uma única palavra; estava atônito, boquiaberto, pasmo mesmo com aquilo que via e ouvia. Sabe-se lá o que lhe passou pela cabeça naquele instante. Com certeza se lembrou do cabelo loiro da Heleninha, e da distante e inesquecível lua de mel, ou se viu novamente um jovem mancebo casado com uma das mocinhas que ele perseguia e tinha como pretensa namorada. Os seus olhos eram só puro sonho, como uma criança recebe a promessa de ir ao circo, então o vô Marcello insistia:
                   - E então Migué, o que você acha ? Com muito custo ele conseguia se recompor. Foi aos poucos se refazendo do susto e recuperando a vóz, que ainda era apenas um sussurro:
                  _ Mas quem é ? Quem é a mulher ? Com quem vocês querem me casar ? Então minha mãe se antecipou, com os argumentos previamente combinados:
                 _ Calma, tio Migué, calma, o senhor vai saber tudo direitinho. Eu acho que de hoje em diante o senhor vai ter uma vida de príncipe. (Ele outra vez olhava muito desconfiado para o trio). Não vai lhe faltar nada, nós vamos lhe providenciar tudo do bom e do melhor, e o melhor de tudo é que o senhor vai ter uma esposa  pra lhe cuidar da roupa, do banho, e da sua comida, sempre quentinha. Agora ele estava mais refeito, e todos os benefícios do enlace estavam evidentes.
                    _ Ta bom, ta bom, mas quem é essa mulher ? Afinal eu vou me casar com quem ? Os três  se entreolharam, e o vô achou que lhe cabia a missão de anunciar a boa nova:
                    _ Você vai se juntar com a Dona Guilhermina. O Miguelão empalideceu outra vez, o sorriso sumiu de repente, e deu uns dois passos para trás.
                    _No, no, no, no, A Dona Guilhermina no, no, de jeito nenhum. É muito velha. Ela é muito velha.
                    Nem é preciso dizer que todo tipo de argumento foi usado em vão.
                    _ No, no, no, no.
                    Não houve acordo. O vô se irritou:
                    _ Ah ! Não quer ? Arruma depressa “la valissa e some pra Sargado agora memo seu tio vagabundo”. Tá vendo Marcelino ?, Tá vendo ? Agora estamos bem arrumados. Perdemos nosso tempo, esse não tem jeito mesmo, não tem jeito.
                     Nessas ocasiões o vô ficava possesso mesmo. Fazia o pobre do Miguelão juntar as roupas amarrotadas, enfiar na valise, e depois ficava na marcação, porque se desse alguma bobeira ele desaparecia e perdia a hora do ônibus para General Salgado. Ele já sabia que a sentença estava assinada então arranjava mil desculpas para sair em busca de qualquer objeto esquecido ou fazer a despedida de algum parente. Porém o vô era inflexível. Quando o ônibus apontava lá em cima na avenida ele juntava o Miguelão pelo braço e o empurrava para dentro da condução até se certificar de que fora mesmo. Enfim voltava respirando tranqüilo. Por uns tempos esse era um problema dos cunhados. 
                           Não aceitou de maneira nenhuma o enlace com a Dona Guilhermina, mas continuava a mil, na mesma ansiedade para arrumar um casamento, desde que fosse com uma menina bem nova e bonita. Falava gracinhas para as moças, o que irritava desde a própria, até as famílias inteiras. Até que alguma mais afoita passava a mão na vassoura e saia lhe dando vassouradas pelas costas. Aí ele disparava a correr aos berros:
                        _ Ingrata. Madalena. Madalena arrependida. Mulher sem coração. Madalena. Ingrata.
                        A Denis era uma mocinha da nossa vizinhança, filha do Sr. Antonio e da Dona Leonizia. Era uma moça bem baixinha, muito pouco desenvolvida, até quase fora do normal, embora até bonitinha  de aparência. Sempre com alguns problemas de saúde, e era uma das “preferidas” do Miguelão.
                       Certo dia ele estava acabrunhado, resmungando entristecido, e minha mãe quis saber o que se passava:
                       _Tio Migué, o que se passa ? Que tristeza é essa ?
                       _Cidinha, me busca a Denis, Cidinha. Eu tô precisando muito da Denis, Cidinha. Me busca ela.
                       _E o senhor acha que a Denis, uma moça novinha, cheirosa, bonita, vai querer vai querer um velho fedorento como o senhor ?
                       _ Será Cidinha ? Será que a Denis não vai me querer ?
                       _Claro que não tio Migué, de jeito nenhum.
                       _Bom... Então me traga a Dona Leonizia mesmo.
                       _Ah! Sim, aí é que o seu Antonio, marido dela lhe dá uma bela de uma surra de reio
                       _Será Cidinha, será que ele me bate ?
                       Foi desconversando e saiu de fininho rumo ao seu
 quartinho.  

                         _ Tio Migué, e aquela história da mulher que o senhor carregou nas costas até o cemitério ?
                         _ Ah, ah, ah, ah, Albertinho, essa m e aprontaram lá no Paraná, quando fui morar com teu tio Antonio. Sabe o que houve ? Num a noite tava um  frio... Mas um frio daqueles, e por cima chuviscando; entrei num bar pra comprar um maço de cigarros, e lá estava essa pobre mulher meio embriagada. Eu me sentei do lado dela e comecei uma conversa com ela. A coitadinha tava muito triste, e cada vez bebia mais, cada vez mais. Até que numa certa hora pra caçoarem de mim, gritaram que o marido dela vinha chegando com a polícia pra me pegar, então eu quis correr mas o povo do bar não deixou, e me disseram que eu tinha que levar a mulher comigo, senão o marido matava ela. Eu fiquei desesperado, e a pobre não conseguia nem ficar de pé. O que fazer ? Bem, joguei ela nas costas e sai correndo pela rua debaixo de chuva e frio, procurava um lugar onde me esconder com ela e nada, nada. Imagine Albertinho, que só fui achar um abrigo dentro do cemitério. Desci essa mulher em cima de uma catacumba, descansei um pouco, depois levei ela para uma dessas igrejinhas que tem nos cemitérios. Eu e ela todos molhados, debaixo de um frio. Então ajuntei uns gravetos mais secos, arrumei uns papéis e acendi um foguinho ali num cantinho, mas o frio era demais, eu acho que fiquei muito perto do fogo, e ainda devo ter cochilado um pouco, só sei que quando me apercebi meu chapéu novo Panamá, estava todo queimado. Albertinho, isso me cortou o coração. Depois mais tarde a pobre mulher se acordou, ficou melhor da embriaguês, e só então fiquei sabendo que ela não tinha marido coisa nenhuma, que me fizeram correr à toa. E o pior, voltei pra casa já de madrugada, e acabei pegando um resfriado, uma tosse que levou um tempão para melhorar.
                       

                        _   O Francí, me dá déi cruze.
                        Era outra das palhaçadas do Miguelão, que agora pronunciava as palavras quase todas pela metade, como se tivesse economizando as letras.
                         _ Dez cruzeiros ? Mas prá que Migué, você precisa de dez cruzeiros ?
                         _ Prá comprá um má de cigá e uma cá de fó.
                         _Mas dez cruzeiros é muito dinheiro tio Migué, vai sobrar quase tudo.
                         _ No, no, no, no, nom fai má. Com o trô, eu compro um pedá de fumo e um canivé.

                         Uma outra mania que o Miguelão sempre tivera, era a de trazer no bolso um pacote de pequenas pedras, embrulhadas em um lenço, que juntava pelas ruas e nos montes de areias das construções. Acreditava carregar ali um verdadeiro tesouro em pedras preciosas.
                         E outros certos pequenos caprichos, meio sem explicação, sem razão de ser, como lado bíblico, místico que às vezes aparecia :
                         _ Cidinha, comprei um fígado de boi, e quero que você me corte ele em doze pedaços, e depois cozinhe apenas em água e sal. Só água e sal. Eu vou rezar e depois comer em homenagem aos doze apóstolos.
                         _ Mas tio Migué, o fígado vai ficar bem melhor se for temperado e refogado com bastante cebola; assim, cozido só com sal eu não sei se vai prestar não.
                         _ Presta sim, Cidinha, presta sim, claro que presta. Eu quero assim, bem simples, só com sal, 

E vou comer em homenagem aos doze apóstolos.
                     Minha mãe cozinhou os doze pedaços de fígado com sal, que se transformaram em doze bolachas de borracha, amargas e pegajosas; então o Miguelão esqueceu a homenagem aos apóstolos.
                      Depois pudemos presenciar o fígado ser oferecido aos cachorros da casa, que depois de darem uma boa cheirada abandonaram o “petisco”
                      Em outras vezes acendia uma fileira de doze velas, e diante delas rezava para os profetas, para os apóstolos, e para vários outros santos.

                      De vez em quando sobrava leite na fazenda dos Carrasco, então o Miguelão era presenteado com um caldeirão cheio, com cerca de cinco ou seis litros. Aí era inevitável: 
 a Cidinha ou a vó Maria tinham de preparar uma bela panelada de arroz doce.

                         Os anos avançaram sobre as nossas vidas, como a maré alta impõe as ondas sobre a areia indefesa da praia. Em 1975, foi a minha vez de após me casar com minha esposa Marisete, deixar a pequena Paranapuã, rumo à grande São Paulo e à possibilidade de um futuro melhor. Foram oito anos que vivemos em São Paulo, e depois mais cinco em Rondônia; durante esse tempo nunca mais vi o Miguelão, e muito raramente obtinha alguma vaga notícia através de amigos ou parentes. O vô Marcello e a vó Maria foram ficando mais velhos, mais aborrecidos, e foram embora para Jales a fim de viverem mais próximo da tia Emília, que podia cuidar melhor deles dois. Além disso em Jales os recursos e todas as condições de vida para um casal de idosos eram melhores. Já não existia mais a máquina de beneficiar arroz, nem a molecada jogando no gramado em sua frente, nem o monte de palha, e o Miguelão que era parte disso tudo se exilara de vez em General Salgado, onde os parentes o prendiam mais, e além disso o tio Zeíco sempre me pareceu demonstrar por ele uma maior compreensão, um maior carinho. Dali eu soube que ele algumas vezes esteve no estado do Paraná, tentando ficar algum tempo com outros irmãos; sem sucesso, já que estes não tinham com ele a mesma convivência, o mesmo passado; seus cônjuges e filhos não o conheciam, e por isso o toleravam menos, por não conhecerem seus hábitos (nem um pouco convencionais). Daí algumas vezes o haverem levado a hospitais psiquiátricos, de onde sempre acabava saindo antes do prazo estabelecido, já que não o consideravam tão louco para viver recluso.
                        Nesse ponto quero fazer uma referência especial à sua inteligência. Muita gente pensava que ali, atrás desse ser inconseqüente, quase totalmente leviano, espavorido, estava uma mente deficiente, incapaz de raciocinar, de concluir idéias. Ledo engano. Quando lhe era conveniente o Miguelão articulava muito bem as suas idéias, e quando internado, sempre que era chamado à presença dos médicos para uma avaliação, se mostrava o mais lúcido possível.   
                              Se vestia adequadamente, comparecia limpo, tomado banho, respeitoso, cumprimentava o médico e com ele às vezes tinha longas conversas:
                         _ Sabe doutor, eu não sou louco, não tenho que estar nesse lugar. Acontece que moro com meu irmão, e a minha cunhada é muito intolerante, muito nervosa. Doutor, o senhor não sabe o que o pobre do meu irmão passa na unha daquela mulher. Ah! Doutor, aquela ali sim, ela é que deveria vir pra cá. 
                         Então o médico sempre lhe fazia um monte de perguntas, cujas respostas ele há tempos tinha decoradas na ponta da língua, cheias de detalhes, de datas, de fatos que o pobre do médico não podia ignorar. Então doida mesmo deve ser a família desse homem, e lhe dava o alvará de soltura.
                         Só em 1988, quando retornamos a Jales, eu pude ir até General Salgado a fim de visitá-lo; treze anos mais tarde e o Miguelão era quase a mesma pessoa; só um pouquinho mais velho e com os cabelos mais brancos. E como me pareceu mais velho, me pareceu também muito mais frágil, dependente dos familiares que cuidavam dele, me pareceu com muito carinho. Mas aqui também haviam as exceções. Assim que ele me cumprimentou com as palavras de praxe, há quanto tempo, puxa vida, etc. tal, me puxou para o fundo da varanda e abaixou a calça até o joelho.
                    _ Olha Albertinho, olha como estou. Estou rendido. Rendido. E exibia o saco do tamanho de um saco de boi. Estou rendido por causa do trabalho pesado. Olha Albertinho. 
Como quem dizia: Pobre de mim, o que eu faço agora ?
                    Deixei com ele algum dinheiro trocado e um pacote de cigarros baratos, e depois de ouvir os “elogios” de sempre (é macho, é homem), voltei para Jales, onde sempre tinha pelo menos alguma notícia através do Chico Pinha, um outro sobrinho seu (meu primo), filho do tio Zé Pinha e da Tia Ana, cujos familiares continuavam em General Salgado.                        

                          A Lúcia, minha irmã, que antes em Paranapuã já fora auxiliar de enfermagem, segurava o pulso do velho moribundo, e eu ali do seu lado acompanhava seus últimos momentos de angústia. Os dois filhos, que estiveram acompanhando a sua agonia desde as últimas horas até há poucos instantes, haviam deixado o quarto do hospital para não presenciarem aquele momento, e aguardavam no corredor a notícia derradeira. Minha irmã olhou para mim ali perto:
                         _ Estão cada vez mais fracas as batidas do seu pulso, acho que não vai demorar muito. Eu ainda podia ouvir a sua respiração cada vez mais compassada; até que respirou longa e profundamente, depois já não se ouvia mais nada. A Lúcia deixou devagar a sua mão sobre o peito, enxugou os olhos e murmurou:
                        _ Acabou.
                        _ Era o vô Marcello, que acabava de abandonar a vida. Então chamei pelo meu pai e pelo tio Miguelzinho que aguardavam no corredor e que se aproximaram da cama para o último adeus. Deixara a vida silenciosamente, da mesma forma que esta lhe preparara uma série de desilusões nos seus últimos anos. Primeiro foi o fim da máquina de arroz de tantas batalhas, tantas lutas e tantas alegrias, onde estivera mais da metade de sua vida. Depois, a seguir a perda da vó Maria que morrera anos antes com uma série de problemas hepáticos e biliares; e em cujo tratamento consumiu o pouco dinheiro que lhe sobrou da venda das propriedades em Paranapuã. Depois disso foi morar com a tia Emília, que passou a cuidar dele, já velho, doente, e combalido. Então como se não fossem bastante as tragédias, veio a morte da tia Emília, depois de lutar bravamente por três anos contra um câncer no intestino. Aí o vô se aborreceu de vez, morando com o genro Angelim, que por mais que lhe tivesse estima e lhe quizesse bem, não podia ter com ele os mesmos cuidados dispensados pela tia Emília.
                         Tudo isso parecia finalmente ter uma solução quando o tio Miguelzinho resolveu deixar Mato Grosso, para cuidar do vô em Jales. Então acabou vindo o pior: O vô caiu durante o banho e no tombo quebrou os ossos da bacia. Foi para a cama de onde nunca mais saiu. 
                           No velório do vô Marcello presenciei o doutor Misael que cuidara dele nos últimos tempos, se justificando com o tio Miguezinho:
                     _ Senhor Miguel, não havia nada que eu pudesse fazer. E não havia nada que nenhum médico pudesse fazer. Sabe porque ? Porque nos últimos dias na cama, com o sofrimento, o Sr. Marcello decidiu que era a hora de morrer, o senhor entende ? Do ponto de vista médico ele estava bem, sem nenhum problema que pudesse levá-lo a óbito. Mas o que pesou foi a sua própria decisão. Ainda naquela último momento eu até poderia ter lhe aplicado uma injeção que o fizesse reagir, mas de nada adiantaria senhor Miguel, a decisão dele estava tomada.
                    No velório do vô Marcello estava o tio Zeíco, que mais uma vez nos deu boas e tranqüilas notícias a respeito do Miguelão:
                    _ Ah! O Migué, tá bom, tá forte como um touro, come bem, dorme bem.
                   _ Tio Zeíco, e as trapalhadas continuam ?
                   - Ah ! Do mesmo jeito , cada dia uma coisa diferente.


                    O Dani, meu irmão, que fora para Cuiabá junto com meus pais e ali se casou, retornou a Jales, como outros, então fomos juntos a General Salgado fazermos uma visita ao Miguelão. E o encontramos novamente o mesmo, apenas bem mais velho, de cabelos bem branquinhos, só mais um dente na boca e com a mesma tagarelice de sempre. Munidos de uma câmara de filmagem, agora pudemos fazer um registro real desse personagem tão carismático embora simples, e tão presente em tudo aquilo que vivemos. A seguir quero resumir da maneira mais fiel possível a conversa que tivemos. Quando liguei a câmara o Miguelão falava de uma viagem ao Paraná:
                    _ Danié, em mais de mil alqueires de invernada, não se via uma moradia. Mil alqueires de invernada.
                    _ Mas tio Migué, o que foram fazer no Paraná ?
                    _ Ah ! Eu fui morar com o Emílio, teu primo, levei minha valisa, levei mudança, levei tudo. Quem foi dirigindo foi o teu primo, o Fernando Fernandes, eu fui morar com o Emílio, e só não fiquei lá, sabe porque ? Sabe porque ? Não tinha cama. Não tinha cama prá eu dormir. Ai, Danié me deu pena, me deu pena de ver as terras do Emílio; o pasto virou terra, os eucaliptos viraram lenha, e as roças viraram macega, um cabaçal. É o que o Emílio tem lá. São só 30 vacas leiteiras, e 10 são do Bráulio.
                     _  Tio Migué, então não tinha cama para o senhor dormir ?
                     _ Ah, ah, Danié não tinha cama.
                     Segurando com a mão onde lhe faltava o dedo médio, o pacote de cigarros que lhe fora presenteado nos descreveu um desastre encontrado na rodovia durante a viagem, até que o Dani interferiu novamente.
                      _ Tio Migué, fala um pouco sobre o rei Heródes.
                      _ Você acha que o mundo dá certo ? O avião decolou do Brasil rumo ao estrangeiro, então voltou, quando voltou, e chegou em Santos, então caiu. Morreram 8 passageiros e o piloto.
                      Então era o avião dos Mamonas Assassinas...

                     _ O senhor ainda usa o gambá tio Migué ?
                     _ Uso, ainda uso debaixo do chapéu.
                     _ E arruda ?
                     _ Também, ainda uso arruda também, ah, se te contar, plantei quarenta pés de arruda no quintal, só sobrou um. Só sobrou um.
                     O senhor quer mandar algum recado para os parentes em Cuiabá ? (Ele entendeu que nós já estávamos indo embora).
                      _ Ah, mas vocês não vão embora hoje. De jeito nenhum. De jeito nenhum. O meu irmão José não deixa. Ah, não deixa. Vocês não vão embora. Se aquieta e depois de instantes continua, num assunto já deixado para trás.
                      Sabe Danié, se eu tivesse setenta anos de idade, eu ainda iria morar com tua mãe outra vez. (Deveria ter agora perto de oitenta anos). Mas eu não aguento. A minha idade não promete mais. Eu não aguento.
                       _ E o senhor conhece Cuiabá ?
                       _ Ah não, Cuiabá dever mais longe que Goiás. 
 Mais longe ainda. Ah, mas hoje você não vai, ah, não vai.
 Aqui nós estamos bem, olha hoje está com vinte e cinco dias que a tua tia Maria foi operada em Rio Preto, no Hospital de Base, e a criada toma conta de tudo, essa criada é muito boa, trabalha por cinco mulheres. É muito boa.
                         Dali fomos conhece seus aposentos. O quartinho, como sempre, apesar da boa vontade de todos, apresentava o mesmo aspecto de sempre, cheio de marcas de escarros, de bitucas de cigarro por todos os lados, e uma vela num pires apagada. O Miguelão chamou a minha atenção:
                         _ Robertinho (o meu nome já era Roberto), hoje já tomei tres banhos, que calor Robertinho, que calor !
                          O Dani chamou a atenção:
                         _ Tio Migué, a vela apagou. Prá quem era essa vela ?
                         _ Essa era prá meu Santo Antonio de Lisboa
                        E o rei Herodes, tio Migué, matou Jesus Cristo ?
                    _ O rei Herodes esta amarrado numa corrente, na mesma corrente onde estava amarrado o dragão que São Jorge matou.Acontece que o dragão escapou da corrente, e aquele que matou o dragão foi São Jorge. Ele chegou no rei e disse: Eu quero a melhor espada, e quero o melhor cavalo do reino, então matou o dragão. E a corrente foi usada para amarrar o rei Herodes; entendeu Danié ?
                     Mudamos de assunto.
                     _ E o Miguezinho esteve aqui, tio Migué ?
                     _ Esteve, esteve aqui, mas olha aqui, olha só, eu quero que o infeliz, o desgraçado do Miguezinho me explique porque abandonou a Vitória. Porque devolveu a coitada da Vitória para a família do Sansão. Se ela era que lavava e passava as suas roupas, se ela costurava os seus ternos imagina Danié... Deixar uma mulher dessas. E ainda, com 120 alqueires de terra, mais de 300 cabeças de gado, o que será que pensa um homem desses ?
                      _ Ah, tio Migué, a tia Vitória deve estar velha...
                      _ No, no, de jeito nenhum, a Vitoria hoje pode ter aí uns sessenta anos, mas velha não. Olha quando São Jorge matou o dragão...
                      _ Peraí, deixa o dragão de lado. O senhor ainda joga bocha ?
                      _ No, no, no, no, parei; era uma palhaçada. Eu era um louco. Imagina que tudo o que eu tinha de dinheiro, perdi na bocha; e eu nem era jogador.Eu era louco. Eu era louco Danié, e nunca mais joguei bocha.
                       E olha, olha que a bocha já me deu dinheiro, um dia eu ganhei do Osmar de Souza, duzentos e quarenta contos de réis, e até hoje ainda não recebi o dinheiro. Não consegui receber. Vou te fazer uma proposta, se você receber o dinheiro que eu tenho na mão do Manolo Rossafa, eu te dou a metade. Chega lá e ponha o Manolo pra frente, chega ele na parede, se você receber eu te ou a metade. 

Mas primeiro, Danié, primeiro eu vou te contar como aconteceu:
                     O Osmar e o Balim fizeram uma jogada difícil, e depois da negra o Balim perdeu. Foram  duzentos e quarenta contos, que o Balim pagou com um cheque de duzentos contos e mais quatro notas de déz. Então o Osmar me deu todo o dinheiro do jogo, e eu peguei tudo e levei na mão da Emília. A Emília por sua vez ao invés de entregar para o Angelim, entregou tudo pro Manolo, e sabe o que ele me deu ? Me deu 10 notas de 10 mirréis, e mais nada. Aquele povo não presta Danié, Aquele povo não presta.
                      Você imagina que quando morreu a Emília, perguntaram por mim. Diz o tio Zeico, que o Manolo perguntou pra ele:
                     _ E o Miguelão ? Cadê o Miguelão ? Cadê o Miguelão ?
                     _ O Miguelão não veio. Está doloriiiido. O Miguelão tá magoado. Não veio. 
                     E o senhor ainda lembra o pomar da dona Dita ?
                     _Me lembro, me lembro, naquele tempo eu estava louco. O que que eu ganhava Robertinho ? Comprava 50 laranjas e pegava 950, prá que ? Não adiantou nada.
                     Danié, vi falar que o Hagapito tá maaaagro, maaaagro de doente, e você sabe porque ? De tanto jogar futebol. O futebol não presta, não presta, você não viu a Itália ?
O jogo foi zero a zero, zero a zero; e quando a Itália fez três gols, o Brasil foi e fez quatro. O futebol não presta.
                     Agora veja:
                     _ Eu penso em ir morar com a tua mãe. Mas se acontecer comigo, o que me aconteceu ontem, acho que eu estou morto. Eu vou ter contar o que me aconteceu ontem:
                     _ Me deu: desinteria, diarréia, desarranjo, e...   
 e... E caganeira, tudo de uma vez. Imagine eu fui dez vezes na patente, dez vezes em seguida na patente... Quase morri.

                          O viver é contraditório e imprevisível. Nem os diamantes são eternos. E às vezes a fantasia é real, mas a realidade nunca se veste de fantasia. 
                          Estávamos em um bar em Jales, eu e o Chico Pinha; tomávamos uma cervejinha, um joguinho de sinuca, num final de sábado à tarde, e ali naquele vai e vem do bate papo, como quem falasse de um jogo de futebol, o Chico olhou prá mim e falou na bucha:
                          _ Valter, você soube que o tio Migué morreu ?
                          _Tio Migué ? Qual deles ?
                          _ Ora, o tio Miguelão, em General Salgado.
                          _ Como assim Chico ? Como assim ? Eu não estou entendendo nada. O que você está falando ?
                          _ Pois é Valter, o tio Miguelão morreu. Eu também não sabia; só hoje o Zé Bagre, filho do tio Zeico me telefonou. O tio Migué morreu no sábado passado.
                          No dia seguinte fui a General Salgado, me inteirar do fato. Era verdade. Quinze dias atrás o tio Migué sofrera um derrame. Internado, em coma, nunca mais abriu os olhos, nem falou mais nada.
                            Calou-se.
                             Então o mundo ficou um pouquinho mais triste.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...