VALTER CAFFER

sábado, 24 de março de 2012

PARANAPUÃ / O NINHO DO COLIBRI





            PARANAPUÃ
               O Ninho do Colibri
                       Valter Caffer











                             Para aquele pequeno menino era o paraíso.
Um perfeito e verdadeiro parque de brinquedos onde tudo   
acontecia. Era o centro do Universo, de onde todos os fatos,  
todas as coisas emanavam em meio às descobertas mais        
fantásticas que brotavam de uma infância que se iniciava em
meio ao fascínio e à ingenuidade própria das crianças.
Havia nisso uma perfeita simbiose entre o menino e a
pequenina  cidade, que viviam uma infância muito precoce
e repleta de ilusões.
                              A pequenina Paranapuã era formada         
basicamente por duas avenidas em forma de cruz, cada qual
com aproximadamente mil metros, de muita poeira, de muitos
acontecimentos e de intermináveis histórias de uma  época em
que o trabalho era mais árduo e a esperança era infinitamente maior.
Ao longo dessas duas avenidas principais, como afluentes de um
rio, várias outras de menor envergadura compunham o
quadrilátero da pequena cidade, cercada nas bordas pelas estradas
boiadeiras. PARANAPUÃ. Era o tempo do ufanismo, da  febre do
crescimento, encabeçado pela construção de  Brasília, a contagiante
promessa de uma nova capital. Havia o compromisso do presidente
JK de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5, e a chegada definitiva da        
industrialização com  a instalação das fábricas automobilísticas, que
arrastavam diariamente centenas de famílias da roça e das pequenas
cidades, rumo a São Paulo, que cheias de ilusão buscavam um futuro
promissor. Enfim, tudo irradiava     progresso e esperança, o país
experimentava uma inédita ebulição; entretanto ali, naquele quase
perdido pedacinho do mundo nada ainda mexia com a cabecinha
ingênua do pequeno menino, que de seu posto de observação e
insofismáveljardim de viver e brincar não podia absorver os fatos que
alimentavam o ímpeto dos adultos. Notícias de todos os lados
chegavam de forma   eloqüente  através do rádio com a inigualável
chamada do  repórter Esso, colocando as pessoas atentas e ligadas
nos acontecimentos, mas o menino não tinha a atenção voltada para
o rádio, nem para os comentários dos adultos.  Ingênua e docemente
sonhava com as futilidades da infância nessa precoce “pré-escola”
que era uma Avenida Ângelo Takaki larga e esburacada, sem luz
elétrica, sem água encanada, sem calçadas e repleta de terrenos
baldios que serviam para intermináveis “esconde-esconde” num
frenético corre-corre com a criançada da vizinhança. Ao longo
daquele arremedo de avenida vez por outra passava um carrinheiro,
um cavaleiro, que vindos dos sítios pelos arredores buscavam
beneficiar o arroz ou moer o milho, e se proverem de pequenas
compras nos armazéns de secos e molhados que aos poucos
brotavam no pequeno vilarejo.Ser atropelado por um desses
cavaleiros, que não raras vezes voltavam embriagados aos seus
lares distantes, era um  dos perigos que ameaçavam a criançada e
trazia preocupação às mães sempre cuidadosas com a prole. Não
sem uma certa razão, pois além da embriaguês dos condutores, os
próprios animais eram arredios e quase sempre mal domados, de
maneira que desciam aos pulos e pinotes avenida abaixo rumo à
Barra Bonita, Arrancado, Sofia ou Arraial dos Cabritos. Perigo
com outras conduções eram mais raros, já que os poucos
automóveis que circulavam por  ali eram impedidos pelos buracos
de desenvolverem qualquer velocidade perigosa. Ônibus e alguns
caminhões eram veículos mais comuns por essas estradas  
poeirentas, aliás, convém esclarecer que aqueles pequenos ônibus   
que percorriam aquelas linhas nada, ou quase nada tinham parecidos 
com o que conhecemos hoje; eram as “folclóricas jardineiras”, que
tinham o motor na parte dianteira como os caminhões mais antigos,
e um grande bagageiro no teto onde os passageiros acomodavam
seus pertences. Quando a lotação interna era muito grande, alguns
mais aventureiros subiam pela escadinha e faziam a viagem no
bagageiro. A primeira jardineira vinha logo cedinho. Saía de outros    
vilarejos vizinhos, como Mesópolis, Populina e Santa Albertina por
volta das 5 ou 6 horas da manhã e faziam a passagem por Paranapuã
com destino a Jales, que já era a cidade mais desenvolvida da região,
onde se situavam as agências bancárias, cartórios, escritórios, 
hospitais, etc. Pouco antes do almoço passava a das dez e meia,     
depois a das duas, e por fim a das quatro da tarde. Simultaneamente
à medida que chegavam em Jales iniciavam a viagem de volta,
percorrendo em sentido inverso o mesmo itinerário, passando por
Paranapuã, a primeira por volta das 10 ou 11 da manhã, depois mais
duas ao longo do dia, e finalmente a última por volta das 6 da tarde. 
Essa sempre apinhada de gente que retornava de Jales no final do
dia após seus afazeres na cidade.




                                   





                                        Quando se chegava de Jales, pelo caminho
do Arraial dos Cabritos, onde se localizava a venda da dona Maria,
mãe do Edinho do ginásio e do Chiquinho da ambulância,
deparava-se de frente com  a Maquina dos Carrasco de benefício
de arroz, logo em frente o sítio do Tonico Gomes, depois, do outro
lado da esquina a residência do Zé Ribeiro, que viria a ser depois o
primeiro Prefeito da cidade, que tinha em frente, do outro lado da rua
a venda do Manoel Português, que viria a ser o prédio da primeira
Prefeitura da cidade. Depois algumas residências, e na esquina de
cima a Máquina Brasil de benefício de arroz do Sr. Marcello Duran,.
alguma venda no meio do quarteirão, o açougue do Cristóvão Sanches
e na esquina seguinte mais uma máquina de arroz, do Sr. Manoel,
pai do Abel (Belo) e sogro do Adelino Trindade. Então os moradores
se sucediam: João Correa, comprador de cereais, Augustinho Gines     
(Gustim Careca), idem, Pedro açougueiro, Sr. João Batista e sua
colônia de casinhas  de aluguel feitas de pau a pique e a sorveteria do
Julio Crepaldi. Na esquina seguinte a Casa Pereira do Luis Reina
primeiro vice prefeito, a casa Matos do Sr. João, pai da Lidia, o
bazar da Nobu, as barbearias do Torino Pelissoni e do Adriano, os     
açougues e as farmácias do Pedro Ortiz e  Dionísio Facinconi, Em
frente à pequena igrejinha , depois demolida, o posto de combustíveis
do Watanabe. Em frente da igreja o Cruzeiro, objeto muito respeitado
nessa época, e ao lado o campo de futebol, bem ali, onde hoje é o
jardim, de maneira que vez por outra a bola inadvertidamente
quebrava uma das janelas da igreja. Mais  em cima ficava a outra
Casa Matos e uma pequena padaria. E do outro lado do quadrilátero,
o bar do Sr Olímpio Salmazo, que era o ponto de ônibus principal.
Nas outras extremidades das duas avenidas mais máquinas de benefício
de arroz, que totalizavam 8 ou 9 na época, e ao longo dessas mesmas
vias, diversos pequenos bares, muito rudimentares,   onde os moradores
se juntavam em intermináveis bebedeiras, jogos de baralho e dominó e
muita moda de viola.
                                      Ainda não havia nenhuma proliferação de 
igrejas evangélicas, de maneira que os lugares de culto ali eram muito
poucos. Havia a igreja católica, muito pequena e acanhada em meio a
uma praça de chão batido e ao lado do campo de futebol (não havia
padre, nem irmãs, e tinha seus rituais atendidos pelo Capelão Afonso
Carrasco);  a Congregação Cristã do Brasil,  conduzida pelo cooperador
Jorge Tomaz, também muito humilde, de   madeira, no terreno onde hoje
é o estacionamento da igreja; a Assembléia de Deus, que tinha seus cultos
atendidos pelo pastor Derli, morador da Barra Bonita, também num
pequeno salão de madeira ao lado do Clube Nipo, e uma minúscula
sala de oração da Igreja Batista, atendida pelo  pastor João Batista.
                                        Basicamente nisso se resumia a pequena
localidade, com seus moradores muito humildes em sua maioria,
trabalhadores rurais e pequenos comerciantes que avistavam ali um
verdadeiro eldorado, onde depositavam todos os sonhos e esperanças
junto com os filhos, trazidos às vezes de muito longe, e não raras vezes
do além-mar, numa total mistura de raças, costumes e crenças, além dos
diversos idiomas e regionalismos peculiares a cada um daqueles
passageiros de uma época que marcou para sempre uma ou duas
gerações inteiras. Assim foram juntando sonhos e trabalho árduo;
dores, angústia e pequenas alegrias; foram moldando suas vidas e
construindo o futuro em volta daquilo que era só labuta e dificuldades.
Removendo espinhos, cultivando a terra e sempre que possível semeando
flores, em busca de um  lugar cada vez mais agradável, até se tornar o
verdadeiro porto seguro de suas vidas, o repouso do velho guerreiro,
o ninho do Colibri.
                                 

                                  Ali estava só um pobre menino triste.
                                  Sentado à soleira da porta, no florescer de seus 7 ou 8 anos, quem olhasse aquele mirrado menino sujo, magrelo e de pés no chão, não lhe anteciparia qualquer sonho maior que a pobreza do lugar, e nenhum futuro melhor que o de qualquer criança vendendo laranjas pela rua ou ainda,um pequeno engraxate de sapatos pelas ruas ora empoeiradas, ora lamacentas da pequena cidade que se projetava em meio à ausência de quase tudo aquilo que seres humanos necessitam para sobreviver nos dias de hoje. Não erraria quem deduzisse qualquer das coisas; mas aquele pequeno menino ia além desses pequenos afazeres diários: tinha na cabeça o encantamento de quem sonha muito, e seu pensamento viajava pelos ares livre como um passarinho. Tão livre, que por diversas vezes  sonhava que era capaz de voar como um passarinho , e sobrevoava o pequeno lugar ligeiro como uma andorinha.  Mas isso era apenas uma pequena amostra daquilo que pode sonhar um pequeno menino de pés no chão, cheio de dor de dentes e com a cabeça repleta de superstições, lendas e crendices alimentadas pela total ausência de cultura daquelas pessoas com as quais convivia. Já estava na escola, e acabava de aprender as primeiras letras, as primeiras simples palavras nos cadernos brochuras de 20 folhas encapados pela mãe, com papel amarelo ouro. Esses primeiros cadernos ainda eram limpinhos, bem cuidados, sem dobras, bem diferentes daqueles que mais tarde no passar do ano os sucederiam.
                                   A escola era apenas uma ampla sala de aulas, formada por quatro fileiras de carteiras onde os alunos sentavam de dois a dois, correspondendo cada fileira a um dos quatro anos do então ensino primário.   Deviam totalizar uns 50 ou 60 alunos sob o comando da professora D. Cynira, que tinha então numa mesma sala todos os alunos da localidade. Primeiro passava lição para uma das séries enquanto as outras executavam diferentes tarefas escolares.                                                                          
                                   Mas o que naquele anoitecer poderia sobrepor-se a seus pequenos e ingênuos sonhos de menino? Quês assustadores fantasmas poderiam amendrontá-lo naquele pequeno espaço entre os batentes da porta da casa? Um menino sempre será só um menino e seus sonhos sempre serão simples anelos a moldar-lhe a infância e a despertar-lhe anseios maiores quando se lhe apresentar a adolescência
                                    Nesse dia, ou melhor, já nesse princípio de noite o menino tinha a  pequena cabeça cheia de coisas que não presenciava à toda hora, e que durante o dia todo havia prendido sua atenção de forma decisiva, tirando-lhe até a fome, ou a vontade de brincar. Sentado ali, na soleira da porta, meditava sobre o dia que se        encerrava. Fora um dia muito  frio, diferente dos demais, com jeito de domingo, jeito de feriado, com muito agito pelas ruas. Enfim um dia ímpar, apenas comparado dentro de sua pequena vivência como cidadão, ao dia das eleições com o vai e vem das pessoas e das notícias e com o burburinho brotando de todos os lados. O pequeno
lugarejo fora sacudido com violência naquela gélida manhã como se houvesse ocorrido um furacão, ou um   terremoto, enfim, uma grande catástrofe, sem precedentes. Pelas ruas, todas as pessoas pareciam meio transtornadas, meio  sem destino, como se não entendessem, ou não acreditassem que pudesse haver ocorrido algo de tamanha magnitude. Iam e vinham pelas ruas sem saber exatamente o que sucedera. Os boatos eram muitos, mas as verdadeiras notícias eram poucas, quase nenhuma, e geralmente imprecisas. Muito se falava, sem que se tivesse muita certeza dos fatos, de maneira que ao longo de todo o dia, a espera pelo desfecho da situação era para todos angustiante.
                           Eram sete da manhã quando na cama o menino abriu os olhos preguiçosos, talvez com o primeiro pensamento no jogo de bolinhas de vidro, ou no alçapão novo que fabricara para o terror dos canários e coleirinhas; quando ouviu o barulho do leiteiro com os litros de leite vindos do curral do velho Carrasco.
                           -Dona Cida, chamava pela mãe do menino. A senhora soube  do acidente ?  Soube da tragédia ?
                           -Acidente ? Que acidente ? Meu Deus, eu não sei de nada, acabei de levantar agora.
                            -Perdemos o nosso prefeito, o Zé Ribeiro se acidentou essa noite...
                            Nesse momento entra na cozinha o pai, que fora à  rua em busca de pão:
                            - Cida, Cida, Já soube do acidente ? O Zé Ribeiro morreu.
                            - Meu Deus! Então é verdade ? O leiteiro acabou de trazer a notícia.
                           O menino sentiu um calafrio debaixo do cobertor, e tratou de cobrir depressa a cabeça com o travesseiro.                                                                                                     Era a primeira vez que ouvia assim  a notícia de uma tragédia, e jamais ouvira assim a notícia de morte de alguém importante. No mesmo instante veio à sua mente a imagem de algum tempo atrás, quando pelas ruas esburacadas o Zé Ribeiro chegou na pequena chácara onde viviam dirigindo um Jeep à procura de seu pai.

                             Feitos os cumprimentos e após o inevitável cafezinho na cozinha, enquanto caminhavam lentos por entre os chiqueiros e o curral, o menino logo a seguir acompanhava calado a conversa dos dois homens:
                             - Sabe Marcilino, conto muito com você, e conto mais ainda com a sua ajuda nessa nossa empreitada. Você bem sabe que a jornada é difícil, nem sempre as pessoas reconhecem o nosso trabalho, e o que fizemos até aqui é tudo perdido se não ganharmos a eleição.
                              - Fica tranqüilo Zé, eu estou com você, e essa você não perde de jeito nenhum.
                              - Olha Marcilino, não podemos mais retroceder. A batalha pela emancipação política foi muito árdua. Quantas viagens a São Paulo... Quanto gabinete... Quanto buscar apoio deste ou daquele deputado... E viu só que maravilha ? Temo o nosso município ! Somos livres ! Livres ! Não dependemos mais de Dolcinópolis  para nada. Temos o nosso município, temos o nosso cartório, só falta termos o nosso Prefeito !
                               - Ah Zé! Você está eleito. O povo de Paranapuã gosta muito de você. Você está eleito.
                               - Não sei... Não sei...A política é muito cheia de surpresas. É  muito ingrata. Veja o Ademar de Barros, o povo não gosta dele ? Gosta. E veja a situação. Saiu fugido do palácio, senão...
                                -Ah! Era só o que me faltava. A situação é muito diferente. Vá Zé... Vamos tomar mais um cafezinho, vamos.
                                “Cida, minha veínha, serve aí um cafezinho quente para o nosso Prefeito.”
                                 O menino acompanhava em silêncio o andar do par de homens com toda a atenção voltada para a conversa. Aos poucos compreendia algumas coisas até então sem explicação,   como certo emaranhado causado pela divisão política do estado. Por   exemplo, agora entendera porque nascera em Paranapuã e seu registro de nascimento fora efetuado em Dolcinópolis. Claro, Paranapuã pertencia a Dolcinópolis, e por isso nem cartório tinha, nem vereador, nem prefeito, nem delegado. Era uma total ausência de autoridade. E agora diante da compreensão desses fatos, e da importância deles para todos, aquele homem  que queria ser      prefeito, o Zé Ribeiro era um  verdadeiro herói. Agora sim, entendia tudo com muita clareza. Ele lutara duramente com o governo para “libertar” Paranapuã, e apresentava tantas e tantas boas idéias para melhorar a cidade... Tantas promessas para aquele povo amigo, que o menino se enchia de encantamento. Ah! As  coisas iam realmente melhorar agora. Primeiro a luz elétrica, adeus lamparinas fumacentas e mariposas sem luz... Depois o telefone, adeus longas distâncias, adeus saudade dos parentes... A água    encanada! Adeus tirar agua do poço... Adeus banho de bacia...      E já  pensou, trazer o mictório para dentro de casa?  Aguinha gelada à toda hora? E por aí afora: o correio, o hospital, e finalmente, porque não? - O asfalto! Adeus poeira, adeus estradas cheias de buracos...
                         Sonhos que agora habitavam aquela cabeça de      criança, como a prepara-la para o primeiro amor, a primeira doce  namorada....
                         O menino sonhava com a cabeça coberta pelo travesseiro querendo continuar vivendo o sonho e não o burburinho que agora perfurava as paredes como lanças em forma de espanto:
            -Meu Deus! Como aconteceu?
            -Não sei... Não sei. Acidente! Acidente!
            - Mas como? Onde?
            - Não sei, parece que foi longe, perto de São Paulo. Ninguém ainda tem absoluta certeza de nada,  povo esta saindo para a rua, diante da casa dele tem um monte de gente, todo mundo abismado, cada um diz uma coisa, mas o certo é que é verdade, é verdade, a família já confirmou, e já foi gente  para o locala fim de   liberar o corpo e trazer para cá.

                      - Meu Deus!
                         Criou coragem e saiu debaixo das cobertas. Foi ao poço, pegou uma caneca d´água no balde e colocou na bacia para lavar o rosto, quando a mãe lhe repetiu a notícia:
                      - Ouviu as conversas Valter?
                      - Ouvi mãe. Um aperto no peito, como se doesse.
                      - Que tragédia! Que tragédia!  Mas vamos esperar os fatos. Anda, vai na cozinha tomar teu leite.
                      - Estou sem fome.
                        O menino era só curiosidade, e não queria leite. Queria notícias, estava ansioso por maiores detalhes.
                        Saiu à rua enquanto a cidade, que agora parecia ainda mais gelada que assustada, acabava de acordar sob a
sombra da tragédia. As mulheres nos portões, mesmos antes de se pentearem ou escovarem os dentes, boquiabertas. Os homens, em grupinhos pelas esquinas, falando baixo, sempre querendo saber mais.
                       - Eram três! Alguém falou mais alto no grupo em frente ao bar do Julio Crepalddi.—Todos mortos. Ninguém sabe como foi. Os três no banco da caminhonete... Todos morreram na hora. Era madrugada...
                         Dali a pouco outro zum...zum...
                        - O Zé não morreu. Foi outro prefeito. Acho que o de Meridiano... Dali a pouco os desmentidos. Tudo boato. As      pessoas iam passando adiante todos os boatos que ouviam, como  se tivessem anseio em desvendar o maior dos mistérios...
                        O menino agasalhado com uma blusa de flanela, ia pela rua ouvindo uns e outros sem falar nada, cheio de curiosidade, quando chegou à porta da casa do Prefeito estava diante de uma verdadeira multidão. O quintal, as varandas, todos os cômodos... Tudo apinhado de gente. Em alguns cantos, velhas com seus incontáveis rosários rezavam incontáveis orações; noutros cantos pessoas da família e amigos mais afins choramingavam desolados cercados por muita gente querendo trazer alguma palavra de consolo. O menino ficava espremido em meio da multidão, mas como era pequeno e magricela, se metia em qualquer pequeno vão entre as pessoas, seguindo em frente pela casa adentro. Até que no quarto principal avistou a viúva. Parecia ser esse seu primeiro alvo. Talvez fossem essas pessoas mais próximas do morto, as pessoas da família, os grandes amigos, o alvo de sua curiosidade. Parecia querer aprender alguma coisa que só um momento desses poderia ensinar. Parecia querer entender a tristeza olhando nos olhos das pessoas mais entristecidas... Queria aprender como era uma dor muito grande, talvez como quem se preparasse para encara-las ao longo de sua própria vida. Jamais ali, na total ingenuidade poderia compreender que sempre pode haver uma dor ainda maior, que ao longo de uma existência são muitos os dissabores     que nos são oferecidos sob todas as formas e aparências; por isso  àquela hora diante de tais circunstâncias era para ele, tudo o que viver poderia  conter de mais triste, de mais irreparável. Ali,  sentada em uma banqueta em frente à penteadeira, com a cabeça envolta por um véu negro, cercada por muitas mulheres entristecidas, a viúva, Dona Olivina lhe parecia muito mais magra e velha do que realmente era. Já não chorava tanto, mas seu semblante era de uma desolação jamais vista. O menino olhou o quadro funesto e afastou-se em silêncio, enquanto as rezas prosseguiam intermináveis.
                             Do dia da eleição ele se lembrava perfeitamente. Nunca vira tanta gente na pequena “vila”. E para aumentar ainda mais a sua sorte, fora um dia chuvoso, com muito barro, muita lama; de maneira que fora um dia propício para engraxar sapatos. Os caminhões, caminhonetas, tratores e carroças chegavam abarrotados no local de votação, vindos em sua maioria da zona rural, trazendo os camponeses com seus sapatos sujos de barro e de bosta de vaca, assim logo procuravam o engraxate, antes de cumprirem o dever sagrado do voto. O faturamento foi alto, e o Zé Ribeiro ganhou por longa margem, sem maiores dificuldades. Afinal, ali, naquelas circunstâncias não havia ninguém melhor, nem melhor preparado, nem mais querido para ser o primeiro prefeito daquele povo. Trazia na face estampado o riso simples do caboclo, o jeito do homem humilde, porém brilhante, muito dado com todos, de forma que pedacinho por pedacinho de si mesmo era parecido com cada pedacinho daquela gente. Tinha uma família enorme, desde irmãos, tios, primos, esposa, e uma filharada danada, todos queridos da gente do lugar. Essa gente o colocou na prefeitura para uma empreitada, como se tivesse ela mesmo derrubando cada empecilho do caminho, superando cada tropeço ao longo da jornada.          
                               Claro; existiam os opositores. Aqueles que além de não colaborarem, ainda procuravam atrapalhar o melhor desempenho do Prefeito, mas essas pequenas rusgas o Zé tirava de letra, geralmente fazia de conta que não era com ele, e seguia com seu constante trabalho de melhorar Paranapuã.


                               No dia dessa inesquecível tragédia, muita coisa já havia sido feita pela pequena cidade. Já tinha luz elétrica, e num dos bares da praça já existia um pequeno posto telefônico, onde havia uma minúscula cabina com menos que um metro quadrado, e uma moça telefonista, que manivelava sem parar um pesado aparelho preto cheio de chiados:
                                - Alô, alô,  Central-Votuporanga? Aqui é o PS– Paranapuã, via Jales. Alô, alô, tá me ouvindo? As minhas ligações interurbanas, que desde cedo ainda não foram completadas? - Alô, alô, alô...
                                Ali o aglomerado e o vai e vem de pessoas também era muito grande, já que só ali poderiam chegar novidades sobre o acontecimento, de maneira que muitos ficavam atentos, à espreita do toque do telefone.
                                A multidão inquieta, e as horas avançavam, até que num dado momento, já perto do entardecer, um jovem rapaz de seus 16, 17 anos, triste, muito abatido, adentrou o posto telefônico. O menino o acompanhou à distância. Por um momento se deteve falando com a telefonista, que depois de manivelar muito e apertar freneticamente vários botões, o encaminhou até a cabina. O menino, ali do lado era pura atenção.
                                -Alô, Votuporanga? Entenda moça, você precisa me ajudar. O meu nome é Wilson. Isso, Wilson Ribeiro, eu sou filho do Prefeito falecido e preciso muito de informações. Alguns momentos depois o telefone tocou e o Wilson correu para a cabina:
                                - Alô, alô, Polícia Rodoviária? Ah... Da base de Araraquara? Sim, sim... O meu nome é Wilson Ribeiro, sou filho do Prefeito morto na Washington Luiz. Ah, sim... Sim... Entendi... Entendi... Então o senhor mesmo esteve no local?                              -Sim... Sim... Agora não é mais com a Rodoviária... Entendo... Ah... Necrotério? Polícia técnica? Sei... Esta bem, está bem, eu vou tentar... Vou tentar falar com eles, grato, muito obrigado  mesmo senhor.
                                Então havia uma luz nas informações. Era só seguir o Wilson e se inteirar dos fatos. Logo dentro do posto do lado de fora da cabina um monte de gente aguardava o jovem órfão:
                                 - Não sei gente, não sei, a Polícia Rodoviária já liberou desde essa manhã. Agora é o necrotério, o IML, a funerária, mas acho que não demora muito para chegar não. Afinal já são quase quatro da tarde, mais de 12 horas do ocorrido. Não é possível, não vai demorar...
                                 Mas demorou! E como demorou...
                                 Agora estava anoitecendo e a agitação do povo era cada vez maior, muita gente chegava dos sítios, das fazendas da vizinhança, os parentes mais mais distantes, autoridades de outras cidades. Todos para a despedida do Prefeito morto, mas o corpo... O corpo nada de chegar. O pequeno local estava apinhado de gente, os bares lotados e pelas calçadas as pessoas espreitavam continuamente a entrada da rua principal de onde surgiria o carro fúnebre. Logo anoiteceu e cada luz de faróis que iluminava a curva lá embaixo provocava a correria de todos num sobressalto que logo se dissipava.
                                  O menino sentado na soleira da porta, perto das sete da noite, todo sujo, com frio, observava e meditava em silêncio: Como tinha gente nas ruas! Que dia! E ele sequer tinha saído para engraxar sapatos. Que vacilada heim? No dia da eleição tinha menos gente, e ganhara mais de 15 contos. Hoje então... Com todo esse povo, seria bem mais... Acordou do leve devaneio com o chamado da mãe:
                                  - Valter, corre tomar seu banho, todos os seus irmãos já tomaram e já vão jantar. Você ainda vai acabar sem janta.
                                  Deixou devagar a soleira da porta e foi ao pequeno banheiro onde o aguardava uma grande bacia cheia de água suja, onde os cinco irmãos menores já haviam se banhado. A mãe adicionou um caneco de água quente e ele esfregou com muita força as canelas magras cheias de poeira. Depois se agasalhou e foi á mesa com os demais.                                     
                                  À mesa do jantar (que ali era simplesmente janta mesmo), apenas as crianças menores, alheias aos acontecimentos do dia, faziam a rotineira bagunça. Era uma família que embora considerada de uma classe social um pouco melhor para o padrão do local e da época, deixava muito a desejar se comparada ao padrão familiar dos maiores centros sociais, tanto em matéria de hábitos e costumes, como na convivência, no relacionamento tanto familiar quanto social. Na mesa da janta, apenas pratos, colheres e garfos, a comida era retirada da própria panela, no fogão, e a mãe servia as crianças menores. Caso houvesse bife na refeição, esse era rasgado com as mãos e com os dentes. 
                                   Nessa noite a família estava mais silenciosa e constrita à mesa. A conversa era pouca e mais uma vez girava em torno da morte do prefeito:
                                   - Que tristeza, Cida, comentou o pai, fiquei sabendo que o Zé ia a São Paulo em busca de verbas para melhoria da cidade. Parece que lhe haviam prometido verbas para a construção de um jardim na frente da igreja nova, lá em cima e para a compra de uma moto niveladora novinha em folha. Já pensou na falta que essa máquina tem feito para nós? Cada vez que dá uma chuvarada temos que esperar uma máquina emprestada de Jales ou de Dolcinópolis.
                                   - Pois é, e quase sempre ficamos sem poder transitar, já que demoram a nos emprestar. Tomara que aquele que substituir o prefeito consiga logo essas verbas...
                                   - E o mais triste, prosseguiu a mãe, é o que fiquei sabendo quando estive na casa do prefeito hoje à tarde:  Antes de seguir viagem ao se despedir da família, ele abraçou a filhinha menor, a Sandrinha, e prometeu a ela trazer uma boneca bem grande e bonita. Já pensou... A menina esperando a boneca, comentando com as amiguinhas...
                                    O menino que já ouvira todas essas conversas várias vezes ao longo do dia, comia calado até assustar-se com os gritos do pai:
                                   - Vê se come direito moleque. Ta se lambuzando todo com o bife. Come feito gente!
                                    Já se acostumara a isso. A noite avançava e a chegada do corpo continuava sendo adiada a toda hora, o povo aguardando se repartiu. Um grupo maior continuava em frente à casa do prefeito, constituído de parentes, autoridades e amigos mais afeitos. Outro grupo se reuniu na Câmara dos Vereadores, onde seria velado o corpo, e aqui e ali, pelas ruas e pelos quintais pequenos grupos conversavam enquanto esperavam. Na casa do menino um grupo de membros da mesma igreja da família conversava na porta da sala, apesar do frio intenso:
                                   - Ah! Irmão, vai ser difícil aparecer outro homem como esse para trabalhar pela cidade. O Zé Ribeiro sempre foi muito interessado nas coisas do município.
                                    - O irmão sabia que ele tinha um sonho que conseguiu realizar? Queria ver inauguradas as duas principais igrejas da cidade. Ajudou em tudo o que foi possível na construção da Igreja Católica. Colaborou como pode, quer nas ofertas, nas campanhas, nas quermesses, e viu a igreja pronta e inaugurada (21.03.1968). Depois queria ver o quanto antes, pronta, a Igreja dos Crentes, o que foi um pouco mais difícil, já que não temos por hábito aceitar ajuda do poder público. Mas o Zé tinha uma parentela crente muito grande, e estava ansioso para ver a igreja pronta.
                                  - Que fatalidade! Acabamos de inaugurar a nossa igreja!
                                  - Alguém tem mais alguma novidade para nos contar ? Indagou alguém no grupo.
                                  - Fiquei sabendo, respondeu um dos irmãos, que  o Alcino ou o Silvestre (que haviam viajado em busca do corpo), telefonou para a família. O acidente foi às 10:30 da noite de ontem, e foi no km 318 da rodovia Washington Luiz, no município de São Lourenço do Turvo. Nosso prefeito não estava dirigindo; o motorista foi direto na traseira de um caminhão, e talvez, num último gesto de instinto tirou seu lado fora no instante da batida, por isso sobreviveu. Mas o Zé, coitado teve um ferimento fatal na altura do pescoço...







        JOSÉ RIBEIRO DISCURSA NA CERIMÔMIA DE                          
               INAUGURAÇÃO DA LUZ



                                  O menino ouvia a conversa sentado na soleira da porta e, enquanto os adultos prosseguiam na conversa. Recordava as grandes festas promovidas pelo político, relembrou o dia da eleição, quando o Zé por larga margem de votos derrotou seu oponente, Joaquim Dias do Nascimento. A apuração ocorrera em Jales (sede da Comarca), e de lá fora trazido em grande festa, nos braços do povo até Paranapuã, onde o esperava uma verdadeira multidão de eleitores. Depois lembrava do dia da posse e da inauguração da Prefeitura num salão em frente à casa do prefeito onde antes funcionara um dos primeiros estabelecimentos comerciais da pequena cidade: O secos e molhados do Mané Português. E o Zé não parava de inaugurar benfeitorias; uma a uma, foi inaugurando: a luz elétrica, o telefone, a coletoria, a igreja matriz, o primeiro calçamento da cidade, e o mais inusitado: não mediu esforços para inaugurar bem depressa a sua morada derradeira a partir do dia de amanhã, o cemitério municipal.
                              A demora fazia pouco caso da ansiedade e do cansaço das pessoas que aguardavam desde o amanhecer do dia 28 de abril de 1968, e só quando as doze badaladas se calaram indicando que passava da meia-noite, o esperado e indesejado carro fúnebre apontou na avenida Ângelo Takaki. Parou em frente à casa do prefeito, e algum tempo depois, acompanhado de uma pequena multidão seguiu lentamente rumo à Câmara Municipal, onde o corpo seria exposto à visitação pública. Quando passou diante da casa do menino, aqueles que proseavam se levantaram depressa e seguiram junto à multidão. O menino seguia atras, porém logo foi avistado e repreendido pelo pai: Volte já para a casa moleque, onde já se viu? Um menino nessa idade, pela rua a uma hora dessas? E com todo esse povo na rua? Volta depressa, ou lhe passo a cinta na bunda. Vamos. Deixou o séquito e voltou em silêncio, cabisbaixo. Na porta da sala a mãe ainda esperava de pé.
                            Deitou-se mas não podia dormir. A cada minuto um sobressalto: Uma coruja no telhado, um assobio na rua, um grito dentro da noite, e os nervos latejavam à flor da pele. Assim as horas se arrastavam até que pai retornou umas três horas depois:

                             -Não pude ver o corpo do prefeito Cida, tem muita gente. A fila é gigantesca e vai quase fora da cidade. Nem até amanhã cedo vai passar todo esse povo diante do caixão. Isso eu tenho absoluta certeza. Ainda pra complicar tem esse pessoal mais antigo que não é capaz de passar, dar uma olhada e seguir em frente. Não. Precisam olhar, depois rezar, rezar antes de sair. Assim vai ser muito demorado...
                             -Finalmente na madrugada se apagou a última lamparina, e o silêncio e a escuridão total reinaram absolutos no quarto do menino onde os outros cinco repousavam. Finalmente o cansaço venceu e o menino dormiu. Mas esse não era um sono normal, um simples adormecer. Os sonhos vieram junto com o sono, primeiro muito confusos, com muita gente falando alto, e ele se encolhendo, se apequenando em locais fétidos e sombrios. Depois vieram verdadeiros pesadelos. Sonhava que ia para a escola de manhã, mas chovia muito e seus pés atolavam na lama, depois a professora lhe batia com uma régua de madeira e o apanhando pelo braço o levava de castigo em frente de toda a criançada. Então a professora era o pai que o espancava, depois era outra vez a professora magérrima e de voz estridente, de duende perverso. O menino tremia muito e chorava todo molhado do xixi que fazia na calça sem parar. Por  fim o expulsavam da escola, que seguia de volta para a casa todo mijado e cagado,  seguido de toda a criançada que gritava em coro o apelido que mais o ridicularizava:
                                   Saracura... Saracura... Saracura...
                                   Provavelmente a exaustão causada pelos        acontecimentos mexera com sua pequena e jovem cabecinha, impondo-lhe tais pesadelos castigando-o com um amanhecer cansado depois de uma noite absolutamente infortunada.
                                   Amanheceu... E ele acordou cheio de tontura,
sonolento, muito cansado como se tivesse levado uma bela surra.
Nem tomou o habitual café com leite e seguiu para diante do velório, o irmão dois anos mais jovem o acompanhava.

                                  Àquela hora estavam presentes a viúva e os dois filhos mais velhos (Wilson e Irene Ribeiro); os menores por certo não tinham ainda a exata noção do que acontecia, e por certo ainda dormiam.
                                   O burburinho e o vai e vem das pessoas continuava a mil, todos querendo se despedir do prefeito até a hora do sepultamento marcado para as 10:00 da manhã. Era 29 de abril de 1968.
                                   Quando faltavam poucos minutos para o final do velório o ronco do motor de um fenemê adentrou pela avenida parando em frente da máquina de benefício de arroz do Marcello Duran. Era o Neno, motorista do caminhão na volta de mais uma de suas intermináveis viagens. Parou, mas não desceu da boléia. Desligou o motor, e depois de um instante ligou novamente, acelerando com força duas ou três vezes, ouvindo atentamente o barulho do motor. Finalmente desligou e, como quem confabulasse consigo mesmo, falou olhando o menino que viera correndo e já se dependurava na porta:
                                     - É, afinal são seis anos na labuta, sem trégua, o motor vai dando seus sinais de cansaço e é hora de dar uma boa olhada nisso. Mas primeiro vamos nos despedir do amigo Zé Ribeiro. O Neno já fora informado do ocorrido pelos amigos caminhoneiros, e acelerara mais no retorno para chegar a tempo, antes do final do velório. Desceu sujo e cansado do Fenemê e foi direto para a Câmara, onde os amigos e familiares faziam a última despedida, enquanto as velhas religiosas executavam em murmúrios as rezas derradeiras. Dali o séquito rumou para a igreja, onde houve a missa de corpo presente, e depois lentamente a multidão como uma centopéia cansada levou o corpo do prefeito morto à sua última morada, num local de destaque no cemitério que ele mesmo construíra  e inaugurara. O Neno voltava com a multidão a passos lentos e o olhar triste de quem mais uma vez presenciava a tragédia dos acidentes de trânsito.
                                               Quantas vezes da cabina de seu caminhão presenciou a morte nas estradas.... Quantas vezes agarrou-se ao pesado  volante e sentiu-se colado ao banco num sobressalto de quem leva um   choque com a presença tão próxima da morte... Quantas vezes ela esteve  rondando seu pequeno espaço sob a forma de luzes cintilantes, de frenéticas buzinadas ou de derrapadas inesperadas...
Durante tantos anos ao volante do FENEME , quantos acidentes presenciara sentindo a impotência de ser humano, e sua incapacidade  de salvar uma vida que grita por piedade ou socorro dentro de ferragens retorcidas, ou de chamas envolventes e tão impiedosas como traiçoeiras...  Vira tantas vidas se esvaírem em meio às curvas das estradas, tantos lamentos, tantas lágrimas, tanta gente órfã ou viúva, que tudo isso passara a fazer parte de seu mundo, de seu dia a dia. Não  era mais surpreendido pelo susto nem pelo desespero que nos castigam o corpo e ferem a alma. Era mais um grande companheiro que tivera a vida furtada pela estrada. Ali a luta travada diariamente ao longo das estradas não tinha mais nenhum valor, cada quilômetro rodado não era mais uma vitória, não existia mais vitória, a tragédia vencera mais uma vez impondo-lhe o peso de encarar sem forças o desafio da nova viagem... Porém a luta da viagem para o Neno era a maior das realidades, não era um semblante nem uma sombra, mas suor e às vezes sangue...Vinha caminhando lento, em silêncio, meditando numa antiga reza que se fazia para os mortos, e no meio do povo deixava apenas o forte cheiro de óleo diesel e graxa misturado ao perfume das flores murchas das muitas coroas já desfalecidas. Foi para a casa, tomou um demorado banho, lambiscou alguma coisa e foi deitar com a esposa depois de longos dias na estrada. Então dormiu profundamente.
                                Bem cedinho, no dia seguinte, foi prestar contas da viagem feita com o vô Marcello, dono do Fenemê, detalhando-lhe os problemas que vinha sentindo no motor do caminhão. Autorizado a executar os reparos necessários, iniciou imediatamente mais esta complicada tarefa, à qual já se dedicara antes com carinho e esmero.  Colocou o caminhão de ré na garagem, de maneira que a frente ficasse bem junto à grande porta de entrada onde o sol clareava com maior intensidade. Abriu o cofre do motor e começou desapertando parafusos, primeiro do cabeçote. Lavou bem a tampa com gasolina, depois colocou sobre os jornais que estendera no cimentado ao lado.
                                Por um momento ficou a pensar nos acontecimentos do dia anterior e sentiu uma friagem estranha percorrer-lhe a espinha.
                                O menino indaga com a curiosidade peculiar da infância:
                                 - Neno, não vai enxugar a peça lavada?
                                 - Não precisa Vartinho, a gasolina evapora depressa, e com o sol batendo ali logo ta tudo enxutinho. Bem melhor que secar com um pano, que sempre vai deixar alguma pequena sujeira.
                               Depois retirou as bronzinas de biela, os anéis, os mancais, tuchos, pistões, etc. Lavou cuidadosamente cada uma das peças, examinando-as com calma, localizando cada cantinho desgastado pelo uso contínuo e pesado. Por último, após uma infinidade de pequenas pecinhas e parafusos, retirou o virabrequim e a tampa do cárter, ficando o motor completamente desmontado sobre os jornais espalhados ao lado do caminhão. O menino, acompanhado do irmão mais novo e do inseparável amigo Tuta, cheios de curiosidade olhavam para o quebra-cabeças das peças enfileiradas e   olhavam para o Neno cheios de admiração. Durante a semana inteira acompanharam sempre que possível o reparo e a substituição das peças defeituosas e a recolocação de cada uma delas no devido lugar. Enfim, após uma semana ouviu-se novamente o ronco do Fenemê. O Neno deu uma volta pelas ruas vizinhas e retornou ao pátio da máquina de arroz. Ao descer do caminhão o vô Marcello o  esperava ansioso, pois já fora obrigado a mandar uma viagem de arroz a São Paulo em um a caminhão fretado em Jales.
                                -Pode ficar tranquilo Sr. Marcelo, o caminhão tá novinho outra vez.
                                -Bom Neno “tenemos” que recuperar a semana perdida, “bamos” carregar agorinha  mesmo. 
                                -Sr. Marcello, eu passei a semana tão ocupado na retífica que até me esqueci dos acontecimentos. O Sr. tá sabendo como ficou a prefeitura?
                                -Ah! O vice, Luiz Reina já assumiu, e vai continuar nesse ano que faltava para o Zé Ribeiro. Tomara que continue a trabalhar firme como o outro. Nossa cidade ainda precisa de muita coisa.
                                E como precisava! O município era novo e carecia de maquinaria para manter transitáveis as estradas, todas de terra. As pontes do município todas de madeira sofriam com as chuvas mais pesadas e não raras vezes eram arrancadas, causando incalculável sofrimento aos agricultores já tão sofridos. Em termos de saúde a população contava apenas com as pequenas farmácias dos cunhados Pedro Ortiz, e Dionizio Facinconi, sendo este último um dos vereadores da primeira câmara eleita na cidade. Qualquer cólica de rim ou crise de apendicite mandava o doente às pressas para Jales, onde havia um hospital e a Santa Casa.
                            Voltemos à odisséia do Neno com o Femenê. Aquela era uma época em que ser caminhoneiro não era simplesmente dirigir um caminhão. As estradas eram muito ruins e os caminhos difíceis. Não havia socorro mecânico ao longo das intermináveis estradas de chão, de maneira que o caminhoneiro era simultaneamente motorista, cozinheiro, médico e mecânico. Pelo menos médico de si mesmo e mecânico do próprio caminhão. E ainda havia mais um senão nessa história toda: O caminhão era importado, e àquela época as peças de reposição praticamente inexistiam, exigindo do mecânico um trabalho extra, artesanal, sendo preciso “fabricar” no torno novas peças para substituir as gastas ou danificadas. Nesse mister o Neno cumpria todos os requisitos: era um bom motorista e mecânico de “mão cheia” não só de caminhões, mas de automóveis e todos os tipos de motores estacionários.  Era um profissional ímpar, desses cuja profissão não lhes impõem um peso sobre os ombros, cuidava de seu trabalho com esmero e simplicidade, desmontando, consertando e voltando a montar um motor com a simplicidade que um ferreiro vai à forja e fabrica uma ferradura. Não raras vezes outros colegas traziam seus caminhões para o Neno dar uma olhada em algum problema mecânico. Outras vezes eram os motores a diesel da máquina de arroz que submetidos a incessante trabalho exigiam os reparos do Neno.
Era quando o maquinista, empregado chefe na máquina de arroz vinha à procura do vô Marcello:
                             - O motor grande está com um barulho muito estranho, seria bom chamar um mecânico para dar uma olhada.
                             -” Nô, nô, nom bamo gasta com mecânico, bamo espera que el Neno volve  de la biaje, entom ele concerta el motor.”
Dali a dois ou três dias lá estava novamente o Neno com o motor desmontado e as peças lavadas e espalhadas pelas folhas de jornais no chão. Esse trabalho era feito em caráter de urgência e às vezes ia pela noite adentro, já que a máquina não podia ficar muito tempo parada.


                             A princípio, quando foi montada a máquina, o arroz beneficiado era levado a São Paulo em um pequeno Chevrolet 1955, depois com o aumento da produção o pequeno caminhão era insuficiente para levar todo o produto. O frete nessa época, devido a escassez de caminhões, era muito caro, consumindo quase todo o lucro que o negócio proporcionava.A solução era um caminhão maior, com o dobro ou mais da capacidade de carga. Foi então que surgiu o Fenemê, novidade para a pequena localidade, dotada de precárias estradas de terra que comportavam apenas pequenos caminhões. Assim o pequeno Chevrolet juntava o arroz em casca nas pequenas propriedades e levava até a máquina de benefício. Ali era cascado,polido e carregado no Fenemê, que seguia a princípio para Jales, depois serpenteava ao longo de mais 150 km de estradas de terra até São José do Rio Preto onde então iniciava o asfalto que conduzia à capital São Paulo. O Neno era pioneiro nesse trajeto que fazia invariavelmente todas as semanas.
                                 Para o pobre menino que jamais viajara para além das pequenas cidadelas da região era sempre interessante ouvir a conversa das pessoas que iam às cidades maiores:
                                  - Olha, eu nunca vi nada igual.Você entra em São Paulo e anda mais de 40 km e a cidade não acaba. Tem hora que parece não ter fim.
                                  - Tem avenida com 4, 5 mãos de direção. São filas e filas de carros cruzando sem parar num vai e vem que parece mais uma boiada estourada.
                                   - Ah! E ainda tem uma infinidade de faróis, os viadutos gigantes, as estradas de ferro com os trens indo e voltando
a todo instante lado a lado com os automóveis.  Atrás do pequeno balcão de madeira, onde servia uma cotuba para o Neno e pinga para os curiosos o Dairzinho Trindade sonhava de olhos abertos:                                  
                                    - Vartinho, tenho fé em Deus que antes de morrer eu ainda vou conhecer a capital de São Paulo... E voltavam ambos a ouvir as histórias e fantasias contadas em volta do balcão.

                                   O menino sonhava acordado. Ainda ia convencer o pai a deixa-lo ir com o Neno numa dessas viagens. Se via a bordo do Fenemê avistando ao longe o mar de luzes da cidade antes do amanhecer, depois dobrando uma esquina após outra, o farrear incessante das buzinas, as sirenas de bombeiros, polícia e ambulâncias, enfim, o eterno rio de multidões no meio do mundo. O frenético vai e vem daqueles que acordam muito cedo para o trabalho.
Ah! Iria ao estádio ver seu time preferido, iria ao cinema, circo, palhaços; quantas bancas de revistas...  quantos  gibis do Tio Patinhas,
Fantasma, Tex Willer...                                     
                                     Outra vez, sonhava... Profundamente.
                                     Pobre menino doente, que o pai segura pela   mão a caminho da igreja como quem vai na ambulância rumo ao    hospital...                                                                                                      
                                     O Neno era de uma família muito humilde na pequena Paranapuã e desde muito cedo, ainda menino, já trabalhava como ajudante nas oficinas mecânicas do lugarejo, onde começara lavando peças para os mecânicos, depois aos poucos    foi tomando gosto pela coisa e a cada dia se dedicando mais e mais ao aprendizado. Rapaz feito, roubou da casa dos pais a linda e jovem Delfina, morena de olhos de ressaca, “a la Capitu”, quer no olhar, quer no comportamento. Logo após o “casamento” recebeu um convite para ser tratorista na  maior fazenda da região pertencente ao fundador da cidade, Paulo Ferraz. Aceitou. Foi lá que o vô Marcello fora busca-lo para pilotar o Fenemê. Não sabia ainda que ser caminhoneiro é renunciar inteiramente a certo tipo   de amor... E deixar se moldar para inesperadas aventuras que destoam inteiramente da vida familiar.






                                   Durante esses anos 60 devido à precariedade das estradas de terra, o transporte ferroviário era essencial. O trem que seguia duas vezes por dia de Santa Fé do Sul a São Paulo, ia sempre apinhado de gente e a demorada viagem de 14 ou 15 horas era feita por muitos passageiros em pé ou deitados pelos corredores. Foi quando apareceu uma novidade na região:    O Auto-trem. Um trem onde os caminhões carregados eram colocados sobre os vagões e descidos em São Paulo. O Fenemê estava entreos primeiros que aderiram à novidade, e o Neno vibrava com a comodidade:
                                     - Uma beleza; eu coloco o caminhão em cima do trem, vou para o vagão dormitório junto com os outros motoristas e adeus estrada... Só acordo em São Paulo para descer o caminhão e levar até  a Cantareira, ali mesmo, bem pertinho, para descarregar o arroz. Depois coloco outra vez o caminhão vazio em cima do trem e só desço quando chega em Jales.
                                     Isso aconteceu por muito tempo, até que num belo dia... O trem descarrilou, e la foram os caminhões para o chão. A viagem era coberta por seguro, mas até que se cumpriram os trâmites legais e o Fenemê foi reformado o tempo passou. Foram 4 meses de uma angustiante espera, até o caminhão voltar, “novinho em folha”.
                                     A rotina das viagens semanais a São Paulocontinuou por muito tempo, mais precisamente por 15 longos anos, até que tudo envelheceu. O vô Marcello ficou 15 anos mais velho, o Fenemê ficou 15 anos mais usado e o Neno não era mais o jovem tratorista e caminhoneiro. Agora era homem maduro, à beira dos   40 anos, casado, pai de dois filhos e já cansado de trabalhar tanto, como empregado; sem maiores perspectivas de um futuro melhor. Tudo isso preocupava e enchia de angústia o Vô Marcello. A produção de arroz ali por perto praticamente se extinguira, sendo que os poucos produtores rurais plantavam apenas para o gasto. A máquina estava praticamente parada, e o Fenemê pouco saía da garagem. Então chamou o Neno para uma conversa:
                                 - Sabe Neno, nesses 15 anos você sempre foi um bom empregado; quer dizer... (o velho estava emocionado) mais que um empregado. Hoje te considero como se fosse um filho... No começo nossa firma era uma sociedade minha com meus dois filhos, e ia até bem, depois a coisa foi se complicando... Primeiro foi o Miguezinho, lembra que ele era teu companheiro nas primeiras viagens a São Paulo ? Pois é... Deixou a sociedade e foi para Mato Grosso com os cunhados e o sogro. Depois o Marcilino... Cismou de pegar sua parte na  sociedade, e também foi cuidar da vida dele. E nós continuamos... Mas agora a coisa se complicou de uma vez. Não se planta mais arroz no Estado de São Paulo, e o custo para traze-lo de Mato Grosso é muito alto. Então pensei: Vou parar. Vou vender a máquina, vender o caminhão e fazer um acerto com o Neno para que ele siga seu rumo.
                                 O Neno ouvia calado as explicações do velho, com um aperto cada vez maior no coração.
                                  - Mas sabe Neno, as coisas não são tão fáceis assim. Dei uma pesquisada na região e ninguém me paga pelo caminhãoaquilo que ele vale, e eu não posso e nem você pode aceitar sair de qualquer jeito, sem uma boa indenização. (Vale lembrar que naquela época as leis trabalhistas eram poucas e não davam ao empregado a devida proteção). O vô Marcello prosseguiu:
                                   Então Neno, eu pensei muito. Pensei bem e quero te fazer uma proposta: Se você aceitar a partir de hoje o Fenemê é teu.
Fica em troco de tua indenização.
                                    O pobre motorista que jamais possuíra nada alem  de uma bicicleta e um rádio de parede gaguejava e suava frio. Difícil decisão.
                                     - Sr. Marcello, eu também tenho o senhor como se fosse um pai para mim, e gostaria de continuar por muito tempo nessa nossa vidinha boa, mas eu entendo a situação. Só não posso lhe dar uma resposta imediatamente, pois preciso pensar um pouco, consultar a esposa, essas coisas. Amanhã eu lhe procuro para uma resposta.
                               Foi para a casa e o conflito se estabeleceu. A mulher era contra ele ficar com o caminhão. Onde já se viu continuar vivendo como uma viúva com o marido vivo? O velho que venda o caminhão e lhe pague em dinheiro. O marido poderia perfeitamente montar uma oficina aqui na vila mesmo, ou comprar uma casinha onde acabariam de criar os filhos. Arranjar outro emprego que não exigisse tantas e tantas viagens... O Neno, coitado, pressionado fingia concordar com a mulher, mas a idéia de ver outro motorista ao volante do Fenemê o atormentava, o martirizava. Não; depois de 15 anos cuidando do caminhão com tanto cuidado, com tanto esmero, não podia deixa-lo com qualquer um. Em pouco tempo seria só sucata. Amava a mulher e os filhos, e queria sempre o melhor para eles, mas o caminhão... O caminhão fora seu verdadeiro lar nesse tempo todo. O cheiro de graxa e óleo diesel fazia parte de sua vida, conhecia cada pecinha daquele motor, cada pequena bucha da suspensão, cada arruela da carroceria. Decidiu. Ficava com o caminhão.

                                                  VÔ MARCELLO
                                

                                  Na manhã seguinte, logo cedo procurou o velho e lhe informou da decisão.
                                 -Ta certo Neno, acho que você decidiu certo. Então vamos agora mesmo no contador (que ali acumulava o cargo de despachante), e vamos passar os documentos para o teu nome. Pronto, o caminhão mudou de proprietário, mas não mudou de motorista. O casamento do Neno com o Fenemê viria a durar ainda mais de 20 anos...
                                  O poderoso caminhão do tempo avançava sobre a pequena cidade, e o menino, um pouco mais crescido, lembrava com saudade da época em que o Neno mergulhava nos motores defeituosos, trabalho no qual tinha especial interesse. Acontece que sempre nesses reparos sobrava sempre algum rolamento quebrado, desses bem grandes, que eram desmontados a golpes de martelo e marreta, de onde eram retiradas em quantidade considerável,as bolinhas de aço que os recheavam. Essas bolinhas, pesadas e inquebráveis tinham cotação altíssima entre as crianças (e marmanjos  também) jogadoras de bolinha de vidro. Como era escasso o dinheiro para comprar bolinhas, e nem sempre se ganhava no jogo, a melhor solução era troca-las pelas inusitadas bolinhas de aço, que às vezes chegava na incrível cotação de 50 por uma. Assim a coleção de bolinhas decuplicava bem depressa.
                                 O joguinho seguia um sistemático ritual, logo pela manhãzinha os meninos se reuniam em frente à máquina de arroz. O Tuta era sempre o primeiro a chegar, depois os demais iam chegando aos poucos, até totalizarem cinco ou seis, um bom número para o jogo. Acertado o número de bolinhas que cada jogador colocaria em jogo o chão era alisado com as mãos e se fazia um pequeno círculo com raio de uns 5 cm. chamado “cabecinha”.. Ali era colocada a bolinha mestra. Desse pequeno círculo saía um risco reto, perpendicular onde eram enfileiradas todas as bolinhas em jogo, três, cinco ou dez de cada participante. Depois por sorteio se determinava a ordem que cada um faria sua jogada. Marcava se uma certa distância, cerca de 20 metros e o primeiro jogador atirava sua bolinha em direção à fileira no chão. Caso acertasse qualquer bolinha, todas as que se encontravam dali para longe da cabecinha eram suas, e as demais continuavam aguardando o próximo participante. Se logo na primeira jogada fosse acertada a cabecinha o jogador ganhava todas as bolinhas, e todos eram obrigados a depósitar novas bolinhas para um novo jogo.
                                  Nesse jogo a bolinha de aço levava acentuada vantagem pois com um peso bem maior deslizava mais firme e não se desviava com facilidade.
                                   Vez por outra o jogo precisava ser interrompido devido algum carro que descia pela avenida poeirenta, ou um caminhão que chegava de longa viagem. Agora o Fenemê não era mais o galo daquele terreiro. A cidade agora tinha diversos caminhões, a maioria 1111 ou “cara chata” da Mercedez Bens. Ali mesmo em frente ao campo de birocas ficava estacionado o 1111 do Chiquinho Trindade, pai do Tuta, um dos jogadores de bolinhas.
                                     A princípio o Chiquinho não era motorista de caminhão mas de ônibus, onde trabalhava na linha Jales a SantaAlbertina, passando por Paranapuã. Depois viera trabalhar com o irmão Adelino Trindade, que por sua vez herdara uma pequena máquina de arroz (elas eram 8 no local), e houvera adquirido um caminhão para os transportes necessários à máquina.
                               Os numerosos irmãos Trindade se criaram ali praticamente desde o início do pequeno vilarejo. Junto com a vila foram crescendo, se fazendo homens, casando, criando filhos, e a família foi ficando cada vez maior de maneira que entre a criançada   num pequeno ou num grande grupo, sempre alguém era primo de alguém.  Mas não obstante a pujança ou o tamanho do clã, os Trindade tinham um funesto encontro marcado com as mazelas do destino. Parece terem sido trapaceados pela sorte e pelo inusitado. Pessoas bondosas, muito queridas por todos,  afeitos ao trabalho, à vida digna e aos melhores costumes, tinham dentro de si o Calcanhar de Aquiles, e foram um a um atingidos pela seta da fatalidade: O coração, fraco e traiçoeiro aos poucos foi deixando sem vida todos os irmãos da grande família..
                                Chiquinho foi uma exceção a essa macabra sentença de morte. Foi o único entre os irmãos a não esperar que o coração colocasse fim aos seus dias, mas caiu fulminado pela hepatite e pela cirrose. Era como um artista, sem trabalho definido; ora chofer de taxi, ora manobrando caminhões, ora motorista de ônibus, aqui e alí, por um caminho que com toda certeza nenhum dos caminhoneiros consegue vislumbrar com facilidade. É o prazer  e a liberdade proporcionada pelo volante de um caminhão, como se o caminhoneiro fosse um aviador ou astronauta por um  caminho absolutamente desconhecido ao encontro do desconhecido ainda maior. E ao longo das intermináveis viagens quanta  gente diferente, quantos seres humanos absolutamente personagens de “outro mundo” vinham  ao seu encontro com suas maluquices bem típicas das beiras de estrada. Caminhoneiro dedicado à profissão, amante da moda de viola e de um bom papo pelos bares da cidade, exibia sempre o sorriso amável acompanhado do azul dos olhos pelas ruas da pequena Paranapuã. Acostumado às  viagens jamais temia o inusitado que habita cada curva das estradas perigosas, onde certos fantasmas espreitam os viajantes, e o pior de tudo é que nem sempre esses fantasmas ocupam  as curvas das estradas, mas os recantos mais escondidos nas sombras do entardecer sob a forma de malária entre tantas outras febres perigosas.  Foi numa dessas intermináveis viagens ao Acre a bordo do Mercedez pertencente ao irmão Adelino que se deparou com a surpresa derradeira. Era a costumeira chuvarada tão comum na região amazônica. Mas desta vez  a chuva pesada  e intermitente colocou um comboio de quase 150 caminhões ilhados em meio à floresta sem nenhum acesso possível, com atoleiros gigantescos e intransponíveis em ambos os sentidos, sem água potável e praticamente nenhuma comida. Chiquinho, junto com os demais colegas caminhoneiros, aguardaram por 15 dias a estiagem. Nesse período beberam água da chuva, e se alimentaram de banana nativa da região enquanto passavam os dias sob a barraca improvisada de lona ouvindo modas caipiras e tomando intermináveis doses de cachaça de alambique. Chiquinho não sabia que a morte marcara aquele pedaço longínquo da floresta amazônica para se encontro com ele. Não que tenha lhe matado ali, mas se instalara em suas entranhas de maneira definitiva, completando aos poucos a destruição total; bem longe dos amigos de bar, das cantorias e dos amigos do peito. Seu fígado já estava comprometido com a hepatite, e acabou por destruí-lo; e quando a estiagem chegou e os caminhões pouco a pouco foram se locomovendo e ganhando estrada, o 1111 do Chiquinho continuou parado. Já não tinha mais forças para abraçar o volante, que tantas vezes abraçara como a mulher mais amada, como ao filho mais querido, ou a conquista do sonho mais singelo. A solução foi chamar às pressas o sobrinho Miltinho Trindade, que veio de Paranapuã a fim de conduzir o caminhão ao seu destino, e encaminhar de volta o tio doente, direto para o Hospital de Base em Rio Preto. Uma vez medicado e submetido a cirurgia, foi deixado bem claro pelos médicos que o atenderam seu delicadíssimo estado de saúde. Seu fígado era agora só uma massa pegajosa como uma gelatina, e a recuperação, se não impossível, só por um verdadeiro milagre...  O milagre não houve, e após mais algumas intervenções médicas o Chiquinho sucumbiu à doença.
                                      Mas esse não foi o primeiro do clã a sucumbir. O coração fraco da família já tinha dado o fim em alguns irmãos e sobrinhos. Primeiro morreu o Realino e seu irmão mais novo, filhos do tio Maneco, sobrinhos do Chiquinho, que ainda muito jovens foram ceifados pelos corações pouco confiáveis dos Trindade.
                                       Joaquim Trindade era proprietário de um pequeno bar na localidade, que era comandado pelo filho mais velho Odair. Quando criança Odair fora acometido por uma doença que diminuiu seu ritmo de crescimento, atingindo na idade adulta menos de 1,50 m. Não obtivera também nenhum sucesso amoroso, sendo que nunca se casou e nem mesmo namorou ninguém. Não obstante era uma criatura dócil e carinhosa com todos, de maneira que ali todos lhe tinham em grande estima. Cuidava do pequeno bar enquanto o pai pilotava uma perua Kombi que normalmente era utilizada no transporte de pessoas entre Paranapuã e Jales. Geralmente a perua ia lotada pela manhãzinha, retornando antes do almoço, depois iniciava outra viagem por volta das 2,00 h da tarde, retornando no final do dia. Quando os passageiros ficavam um pouco escassos o Joaquim se valia de uma estratégia simples, mas de muita eficácia: O primeiro ônibus passava às sete da manhã rumo a Jales; então quando faltavam uns 10 minutos para a passagem do ônibus, o Joaquim descia lentamente a longa avenida ao volante da Kombi. Bem depressa os passageiros que aguardavam o ônibus iam se acomodando na perua que os levava pelo mesmo preço do coletivo. Essa prática beirava a uma concorrência desleal, mas acontecia de uma maneira simplória e até ingênua de maneira que absolutamente ninguém a condenava.
                              O menino, agora um jovem adolescente cheio de incertezas e indecisões observava à porta da máquina de arroz a Kombi do Joaquim Trindade seguir lotada rumo a Jales, e lembrava docemente das viagens que fizera dentro dela rumo às pescarias pelos  pequenos ribeirões da região. Ocorre que os parentes que              apareciam vindos geralmente de São Paulo, chegavam no lugar
ávidos de uma pescaria e imediatamente “recrutavam os dois meninos    para acompanhá-los ao Córrego das Araras, ao Arrancado,  ou à Famosa “Porteira da Cueca”, local à beira do Rio Grande onde de    certa feita encontraram uma cueca pendurada no mourão da porteira  de entrada do lugar, que lhe causou a inusitada denominação. Para essas viagens pesqueiras era sempre contratado o serviço do Joaquim Trindade, que ria copiosamente com a ansiedade dos meninos diante da pescaria. Talvez nestas pequenas incursões pelas beiras dos córregos tenha o menino      adquirido o gosto pelas pescarias, tornando-se depois uma das grandes paixões de sua vida.
                                Voltando ao caso da Kombi, a concorrência pelos passageiros era ainda mais desleal porque concorria com um ônibus vagaroso, sujo e sempre muito lotado, de forma que as pessoas sempre tinham a preferência pelo veículo mais confortável. Além desse itinerário a kombi se transformava em táxi sempre que alguém necessitasse de uma viagem urgente quer para uma festa de batizado ou casamento, quer para hospitais carregando os parentes doentes.
                                O bar  cuidado pelo Odair Trindade (filho do Joaquim da Kombi), era sempre visitado pelo menino à procura de fregueses para vender laranjas ou engraxar sapatos. Às vezes deixava a caixa  de engraxar num cantinho qualquer e ajudava o Odair na faxina do salão. Nessa empreitada a tarefa preferida era arrumar os doces na vitrina, ajeitando-os nos pratos, retirando as moscas e limpando os vidros. Esse trabalho era negociado com o vendeiro em troca de o menino comer os doces eventualmente quebrados. Não eram raros mas quando a vitrina só apresentava doces inteiros, num pequeno cochilo do Odair uma paçoca era quebrada bem depressa... Então o vendeiro comentava com ar de distraído:

                                  - Agorinha mesmo eu olhei aí e não vi nenhum doce quebrado...  Mas enquanto eram devoradas as duas metades da paçoca Odair contemporizava, visto que tinha pelo menino grande apreço, já que era seu grande companheiro e competidor no hobby preferido. Resolviam complicadíssimas divisões com 18 a 20 numerais como divisor ou dividendo. Mais ou menos assim:
                      89756976545632810776 :  2169045436785109 =
Passavam horas debruçados sobre um papel de pão, sem uso de calculadora de qualquer espécie, e não raras vezes o menino acabava primeiro. O competidor, alguns anos mais velho não se conformava com a derrota:                                  
                                    - Não é possível, você acabou muito depressa. Vamos tirar a prova dos nove. Era mais um tempão danado tirando a tal prova dos nove. Finalmente se convencia de que a conta estava correta.              
                                    Em meio a tanto vai e vem, pela estrada ora empoeirada, ora lamacenta, o Joaquim Trindade ficou à beira do caminho. O coração dos Trindade mostrava sua marca registrada, parando subitamente no meio da viagem... Pouco tempo depois outra vez a mesma tragédia visitava a família. Em Goiás onde residia um dos filhos do Joaquim, Manuel Trindade com pouco mais de trinta anos, não resistiu ao segundo infarto e deixou mais uma lacuna na família. Anos mais tarde a fatalidade encontrou-se com o Odair, e foi impiedosa levando para o além mais um de nossos entes queridos. A causa mortis de mais esse membro da família foi a mesma: Subitamente o coração parou no meio do caminho.
                                 Os irmãos sobreviventes se deram conta do risco que os perseguia, e passaram a procurar os médicos em busca de diagnósticos sobre seus  estados de saúde. Um a um foram sendo esclarecidos pelos médicos que todos tinham sérios problemas de saúde. E o pior é que em nenhum era o caso de ponte de safena, nem de transplante ou qualquer outra intervenção cirúrgica. Embora fossem evidentes tantos avanços na medicina, o diagnóstico da patologia cardíaca dos Trindade era praticamente uma sentença de morte. Restava sobreviver pelo maior tempo possível e a espera de um milagre que os livrasse do pesado e fatídico destino.

                                  O Bodoque (Antonio Trindade) era o mais sossegado dos irmãos. Sempre alegre, bonachão, com as bochechas gordas e a barriga muito saliente era a total tranqüilidade. Qualquer pessoa que o visse tão gordo, tão sossegado, não poderia supor que fosse também portador de um coração comprometido com o inesperado. Desde muito jovens os irmãos Antonio (Bodoque) e Alfredo, o mais jovem da família, que tinha paixões muito insinuantes pelos calhambeques, pela jovem Tereza e pelo violão, abraçado ao qual executava apaixonadas serenatas pelas madrugadas. Mas ambos   eram apaixonados pelos calhambeques que adquiriam e aos quais se dedicavam inteiramente na oficina que mantinham como sócios. Compravam esses carros antigos, já bem fora de moda e às vezes em estado deplorável, e levavam para a oficina onde trabalhavam dias e às vezes noites a fio num trabalho mecânico quase artesanal já que tinham que se valer do improviso no reparo de peças insubstituíveis, já que não estavam mais à venda no mercado. Então após vários dias de labuta, do interior da oficina Merca Tudo vinha para a rua uma antiga chimbica Pé de Bode, ou um daqueles carros pretos, grandalhões, muito parecidos com um besouro, e lá iam os dois irmãos, um no volante enquanto o outro rodava dezenas de vezes a manivela até o motor “pegar”. (A manivela foi precursora do motor de arranque, que passou a integrar os carros mais novos.) Aí o carro era mantido em alta aceleração, num barulho infernal, para os ajustes. Caso fosse baixada a aceleração o carro afogava, então para pegar de novo... Haja força na manivela... Então durante os ajustes o carro invariavelmente dava estouros medonhos enquanto o motor recebia os ajustes necessários. Às vezes não obstante centenas de volta na manivela o carro insistia  em não pegar. Então a solução era empurrar pela rua afora. Aí entrava a criançada que estava sempre por ali em uma brincadeira qualquer. Eram intermináveis voltas no quarteirão com um dos mecânicos ao volante e a criançada empurrando, até que finalmente o motor “pegava”, e na maior gritaria todos ganhavam uma volta pelos arredores a bordo do calhambeque. Era uma tremenda festa, pois o carro falhava muito e estourava como rojão em noite de São João, barulho só superado pelos gritos de alegria dos seus ocupantes.

                             Nos finais de semana lá ia o Bodoque com seu “carro” para a represa local. No banco traseiro levava uma cesta de pastéis para vender aos banhistas. A represa era um dos poucos locais de lazer na região onde as pessoas aliviavam o intenso calor que no verão era implacável. O Bodoque com sua obesidade era muito incomodado com a alta temperatura, de maneira que bem depressa lá estava ele boiando de barriga para cima nas águas da represa. Era quando a criançada, sem dinheiro para comprá-los, se fartava dos pastéis abandonados no banco traseiro do Pé de Bode. Gratuitamente.
                            Foi no intervalo entre uma e outra dessas aventuras que o coração grande e bondoso do Bodoque sucumbiu.
                            A sabedoria bíblica nos ensina coisas que superam o viver ou a vã filosofia: Qual o caminho de uma cobra sobre as pedras, ou de uma cobra sobre o deserto? Qual o caminho de um homem em busca do sucesso, do amor ou do reconhecimento?
                            Restavam o João, o Alfredo e o Adelino que dentre todos era o mais afeito aos negócios e ao comércio. Desde que herdara do sogro a pequena máquina de arroz e um velho caminhão dos anos 40 progredira bastante. Dentre todos os irmãos era o que tinha melhor tino pra os negócios. Aos poucos se estabeleceu como comprador de cereais, foi adquirindo caminhões, aumentando os armazéns, e enquanto a região se constituiu num celeiro agrícola se manteve firme, sempre ampliando a área de atuação. Depois, pouco a pouco as plantações de arroz se tornaram escassas, o algodão e o amendoim praticamente desapareceram substituídos simultaneamente pelo tecido sintético e pela soja na indústria do óleo comestível. Nessa época de crise os comerciantes locais ligados à produção agrícola foram entrando em decadência e o Adelino não foi exceção à regra. Precisou se desfazer da máquina de arroz, e acabou por ir embora da cidade, mudando com a família para Americana levando dos bens apenas um caminhão Mercedez Benz, com o qual passou a trabalhar com o filho Ita Trindade. Em Paranapuã ficou  o filho mais velho Milton Trindade (Miltinho), também caminhoneiro, por sinal, o mesmo que tempos atrás fora ao Acre a fim de ajudar o tio Chiquinho Trindade acometido de hepatite e cirrose. E que repartira  com o menino dessa história uma boa parte de sua própria história. Os pais alem de vizinhos e freqüentadores da mesma igreja exerciam a mesma atividade comercial, de maneira que era estreita a amizade de ambos. Sempre freqüentaram a mesma igreja, a mesma escola, e por crescerem juntos tinham as mesmas amizades, trocavam discos e  nos finais se semana se juntavam para ouvir musica sob as árvores no pequeno gramado frente a máquina de arroz. Juntos se tornaram adolescentes e foram em busca dos primeiros flertes com as meninas do lugar. Miltinho, como a maioria dos homens da família tinha paixão pelo volante do caminhão. Deixou a escola e encarou bem jovem ainda, a estrada sem fim. Aos poucos se firmou como um dos bons caminhoneiros do lugar. Numa viagem a São Paulo Miltinho subitamente parou o caminhão à beira da rodovia, fato considerado estranho por outro caminhoneiro que vinha logo atrás, era o Pio, Antonio Vicente Neto, outro a grande família Paranapuã, e que imediatamente parou também para ver o que ocorria com o amigo. Aproximou-se e deparou com o Miltinho abaixado diante do caminhão segurando no para choques,  vomitando muito. Indagado sobre o mal estar, respondeu apenas que estava mal devido ter comido curau e pamonhas, derivados do milho verde. Não houve nem mais uma palavra, o Miltinho caiu aos trinta e poucos anos fulminado pela mesma catástrofe que dizimava a família inteira: Infarto. Coração fraco, que fazia mais uma viúva e três pequenas filhas órfãs.
                                 Nessa época o Adelino, seu pai, já voltara a residir em Paranapuã, depois de mais infortúnios em Americana, e não era mais nem um pálido esboço daquele homem vitorioso de outrora. Os cabelos claros agora eram brancos e os olhos azuis, muito claros e vívidos eram agora um arremedo de tristeza e desencanto. Já doente, passou a viver quase em silêncio, caminhando lentamente pelas ruas ou passando horas sozinho, sentado nos bancos da praça, talvez desiludido ou inconformado com o infortúnio e a miséria que o destino lhe reservara para o final da vida. Com a morte do filho a tristeza se agigantou e abreviou a sentença que o destino lhe impusera.Também foi dizimado pelo ataque cardíaco.
                                 João Trindade se decidiu a fazer alguma coisa para evitar o destino dos demais irmãos. Vendeu a pequena casa que possuía em Paranapuã e adquiriu outra em Mira Estrela, cidade à beira do Rio Grande e com uma prainha maravilhosa. Como se deixando Paranapuã deixasse ali o risco iminente de sucumbir, como se na nova morada existisse um novo coração à sua espera... Passou a ter uma vida sem maiores tribulações, sem desgostos, com muita pesca, muita tranqüilidade. O que pode o homem fazer contra o infortúnio que traz dentro de si como um mórbido parasita? Há alguma maneira de enganar ou afastar a morte que nos habita desde o ventre materno? Certamente se existir tal milagre o João o havia encontrado, afinal nada como uma vida saudável e descompromissada, seguida de boa alimentação, lazer e os cuidados normais com a saúde para termos longevidade. Mas o coração não tomou conhecimento dessas benesses, e enquanto o João tudo fazia para dar-lhe paz, ele traiçoeiramente lhe preparava o funeral. Viera a Paranapuã para um final de semana e no retorno a Mira Estrela sentiu-se mal e parou o velho corcel à beira da estrada. Nunca mais seguiu rumo ao seu destino.  O coração mudou o rumo da viagem.
                                      Alfredo Trindade o caçula dos irmãos  agora era o único sobrevivente nesse mar de tantos naufrágios. Era dentre todos o dotado de maior sensibilidade, com uma veia artística muito saliente. Sempre fora ligado a atividades artísticas ou culturais. Era proprietário do cinema em Paranapuã (Cine Paraiso), dono do serviço de alto falantes (O Cacique do Ar). Fora diretor,  ator e produtor do primeiro filme rodado na cidade (Assalto sobre a Ponte) e vereador na cidade por duas legislaturas. Era exímio violeiro e muito bom cantador  de modas de viola tendo feito várias parcerias sempre com muito sucesso no local. Além disso foi o criador artístico da cantora Jayne, motivo de seu maior orgulho e alegria, tendo a ensinado desde muito cedo, ainda criança na arte de cantar, levando-a em apresentações em diversos locais até se firmar como grande sucesso. Jayne sempre teve pelo Alfredo grande apreço, talvez vendo espelhado nele um pedaço do pai que perdera ainda criança.
                                 

                                      Como em todas as cidades pequenas o cinema em Paranapuã também entrou em decadência com público cada vez menor, até fechar as portas em definitivo. O Alto falante saiu do ar e o Alfredo não conseguiu mais se eleger. Moda de viola... Aqui não dava futuro prá ninguém... O remédio foi ir de mudança para Jales, onde tinha a possibilidade de trabalhar como inspetor de alunos em uma escola de primeiro e segundo graus. Paralelamente empunhava uma filmadora de vídeo, registrando festas, aniversários, rodeios, etc.
                                      A realidade para o Alfredo parecia ser diversa daquela vivida pelos seus irmãos. Em Jales estava perto de maiores recursos médicos, e alem disso a medicina aos poucos dispunha de maiores recursos no tratamento de doenças antes fatais. Passou a monitorar o coração com regularidade, fazendo periódicos exames de colesterol, trigliceris, diabetes, e quantos se fizessem necessários para lhe garantir  o bom funcionamento do organismo. Aos poucos se fez amigo dos médicos, que também passaram a lhe dedicar maior atenção. De repente numa dessas consultas de rotina o Dr. Misael percebeu seu coração um pouco maior que o normal, um pouco   inchado talvez. Esse detalhe acendeu a luz amarela para o Alfredo, que passou a se medicar sistematicamente; se aposentou afastando-se do trabalho na escola e prosseguiu apenas com a câmera em punho, que para ele representava mais um prazer que um  trabalho.
                                   Foi à procura de uma vida mais prazeirosa, mas já não tinha a alegria de antes. Nada mais o entusiasmava como fora com os calhambeques, com a Tereza que agora era uma senhora mãe de seus três filhos, nem como a velha viola de pinho. Pouco a pouco o Alfredo foi se fazendo mais e mais triste, acabrunhado, como quem espera em silêncio na cela a execução de uma sentença de morte, sem pedir nenhuma clemência.
                                   Aquele pobre menino era agora um pobre homem cheio de muitas desilusões, passando pela vida à mercê de altos e baixos, ora cheio de glórias, ora cheio de infortúnios, e o     Alfredo era seu amigo constante. Às vezes aparecia à noitinha com o violão embaixo do braço à procura de um companheiro para cantar as velhas canções sertanejas e de uma boa dose de stanheguer. Geralmente cantavam uma música do compositor José Fortuna denominada Canga do Tempo, que estabelecia um paralelo entre a canga atada ao pescoço do boi e as mazelas impostas ao homem diante dos inesperados encontros com a fatalidade. Então o Alfredo chorava muito e desfilava lamentos ao companheiro de viola.   
                                   De todos foi o que teve maior sobrevida com o coração doente, mas o ciclo da fatalidade foi impiedoso, sem exceções e numa madrugada fria a fatídica notícia percorreu a cidade. O Alfredo morreu vítima de parada cárdio respiratóoria.
                                   Como se fosse uma trágica epidemia o coração  eliminou de nosso meio os irmãos Trindade. Alguns de seus filhos já tiveram o mesmo destino. Quês fatalidades estarão escondidas à espreita dos próximos candidatos?
                                  
                                    Esse homem se faz menino novamente ao   recordar tantos companheiros perdidos... Devaneia segurando o cabo da viola enquanto bate nas cordas sem entoar nenhuma canção, como se a vida fosse esse amorfo bater de cordas sem rítmo e sem   nenhum compasso onde não cabe nenhuma música. Pouco a pouco lhe vem à mente os velhos amigos de infância... Com quantos deles ainda será possível contar? A morte ceifou tantas dessas vidas antes que completassem seu óbvio ciclo de vida, como se atravessando os caminhos e interrompendo-os à mercê de insanos desejos, como se não compreendesse que a vida deve ter um ciclo completo para cada ser humano. Como avaliar a dor de um pai que perde o filho querido ainda jovem?  Que tipo de tristeza carrega o coração da mãe que arruma o quarto do filho morto?
                              Ah! A morte sempre se fez indelicadamente presente nessa comunidade. Então recorda velhos amigos que obtiveram passaporte sem volta para essa viagem:
                              O Miltinho já é só uma ferida cicatrizada na alma daqueles que o amavam. Mas antes foram outros, como o xará,Valter Pellissoni, vítima de um escorregão na escadaria de um centro de recuperação onde se tratava do alcoolismo. Depois o colega de escola e de aventuras pela chácara, José Nanchi, que caiu dentro do   supermercado que adquirira após tantas batalhas. Mais uma vítima  do pobre coração. O Nê se fizera vereador e gozava a alegria dessa maravilhosa conquista quando numa pequena viagem na caçamba de  uma caminhoneta voou com o colchão sobre o qual viajava estatelando-se no asfalto. O Jair irmão do Jurandir foi-se de maneira quase inexplicável, e seu primo Maurício Beguelini, outro companheiro de carteirinha também havia realizado o sonho dourado e se tornara policial rodoviário. Mas tinha o encontro com a morte selado e  carimbado em uma   estrada na longínqua Pontes e Lacerda, onde sucumbiu vítima de ladrões de automóveis.    
                              De maneira impiedosa dia após dia,ano após ano, a morte seguiu ceifando vidas dos filhos do pequeno lugar, e o trágico destino da família Trindade escreveu mais páginas de dor e saudade no coração de todos. Anos depois da morte do Miltinho Trindade, foi a vez de seu irmão mais jovem, o Ita, que foi acometido de  forma inesperada quando também estava ao volante de um caminhão, atraiçoado pelo fraco coração marca “Trindade”.  Depois, mais um. A Antonia ou Tonha, filha do tio Maneco era muito bonita, mulher muito cobiçada, mas tinha o mesmo coração traiçoeiro dos irmãos, tios e primos. Inesperadamente caiu violentada por mais uma tragédia causada pelo coração “Trindade”. 
                               Os verdes anos aos poucos se faziam distantes do sonhos e dos contos de fadas, e a doce ingenuidade que se estabelecera tão profunda naquele pequeno coração, agora ia lentamente  cedendo espaço para muitas incertezas. A mente de criança como a    desabrochar aos poucos deixava de se preocupar com as arapucas,   alçapões e bolinhas de vidro. Pouco a pouco notava-se que aquele      pequeno menino magricela, muito esperto (embora ingênuo) e dono de um raciocínio privilegiado trazia algo mais dentro de si. Ao longo do  curso ginasial ostentou notas magníficas, obtendo ao final de cada trimestre  um rosário completo de notas dez. 

                                Em 1970 enquanto a seleção brasileira se tornava tri-campeã de futebol, Paranapuã ganhava a primeira escola de nível médio entre as pequenas cidades da região; assim, tão logo concluiu o curso ginasial o jovem passageiro dessa historia ingressou no primeiro ano do curso de contabilidade no Colégio Comercial de     Paranapuã. Era um salto e tanto para a pequena comunidade, que agora prometia formar técnicos em contabilidade em quantidade e qualidade sem precedentes. Ali mais uma vez o jovem talentoso se destacava nos estudos obtendo rapidamente o respeito e o carinho de colegas  e professores. Vale lembrar aqui a dedicação desses professores quase sempre improvisados, que em sua maioria não tinham a qualificação profissional adequada, entretanto supriam essa falta com uma dedicação digna daqueles que trabalham por amor à cultura e à educação.     Assim, o professor Miro (Valdomiro Rosa) era na verdade alfaiate,  tornando-se depois funcionário do INPS; o Zezinho Polícia, além de professor era um dos poucos policiais militares da cidade; a professora Lídia lecionava língua portuguesa, porem era comerciante, proprietária da Casa Matos. Ademar Crem, Neusinha Takaki e professora Vitória além do proprietário da escola Osvaldo Martines Peregrino eram professores de escolas de 1º e 2º graus. A Secretaria da escola era exercida pelo tio Nego (Ângelo Sanches Dom), na verdade tio da (futura) esposa daquele jovem aluno.
                                 Por essa inédita e arrojada escola passaram quase todos os promissores jovens da pequena localidade. Nas primeiras turmas se formaram Pedrinho Salmazo e irmãos, Valdoci Seconello,  nobre vereador, eterna lembrança do trabalho e da preserverança. Depois seu irmão Carlinhos Seconello, Valter Cafer, os irmãos Bernardinelli, Davi Pinatto  entre tantos outros que ali procuravam o mínimo do  aprendizado que podia ser oferecido aos talentosos jovens do lugar.

                                      Quando iniciaram o último ano do curso de   contabilidade, foram abertas inscrições para concurso da Caixa Econômica Federal, e lá foram os alunos do Colégio Comercial que  recente haviam completado 18 anos, até SJRPreto em busca da sonhada vaga. Entre esses, o Valter e os irmãos Elsom e Erzio Bernardinelli, que estudaram e viajaram juntos. Quando divulgou-se o resultado, a surpresa e a alegria. O nome de um deles constava na lista dos aprovados: Valter Duran Caffer. A vida desse agora pacato  cidadão, recem casado aos 18 anos, sofreria uma guinada completa. Mediante um acordo com a direção da escola e professores, que agora eram só elogios ao aluno prodígio, e orgulho de terem sido seus   mestres, deixou a escola em 22.08.1975 (só retornando em dezembro do mesmo ano para os exames finais, quando foi aprovado com brilho, mesmo sem comparecer aos 3 meses finais do curso), e seguiu para Santo André, na grande São Paulo, onde assumiu como escriturário da CEF em 25.08.1975, tendo logo uma carreira meteórica, chegando a cargos de gerência com apenas dois anos de trabalho,aos 22 anos incompletos, tornando-se o gerente mais jovem de toda a empresa. Entretanto paralelo à dedicação e ao zelo pela carreira, existia  a lembrança e a saudade dos amigos e da pequena Paranapuã. Tão logo logrou adquirir o primeiro período de férias rumou na madrugada seguinte junto com a jovem esposa, a bordo do fusquinha azul        marinho, ano 1962, à terra dos tabocais. O ninho do Colibri. Alí viveria nos próximos 30 dias, como um filho que torna à casa. Festas, alegria e as mais efusivas demonstrações de carinho e de saudade.
                                  O tio Nego (tio da esposa), secretário do Colégio Comercial, logo se  adiantou:
                                  - Valter, que dia vamos fazer uma pescaria no Rio Grande?  (Isso não é pergunta que se deixa sem resposta)
                                  - Amanhã mesmo Nego, logo cedinho.
                                  - Não, não “Vartinho”, cedinho eu não posso;  tenho alguns probleminhas a resolver, mas vamos à tarde, logo após o almoço.
                                  -Combinado.

                                   Logo cedinho, na manhã seguinte, correu     arrancar minhocas no fundo do quintal, depois foi preparar a tralha de pesca, e por último pegou lanches na pequena padaria. Tudo arrumadinho, foi ansioso em busca do almoço, para depois ir à procura do Nego para a pescaria.
                                    Que pena. Essa pescaria jamais aconteceu.
                                     Tão logo engoliu um pouco de comida como quem engole a própria ansiedade, foi em busca do companheiro em sua residência. Logo deparou com amigos e vizinhos assustados e muito sangue espalhado pelo chão da varanda. O Nego apressado para arrumar tudo para a pescaria se deparou com uma torneira vazando no tanque de lavar roupas. Ainda mais apressado tentava conter o vazamento quando subitamente a faca afiada e potiaguda escapou do cano plástico que tentava cortar de cima para baixo atingindo a mão esquerda que segurava o cano, se enterrando ao longo da palma junto ao polegar até embaixo junto ao dedo mindinho. Apesar do socorro que apressadamente os mais próximos prestaram, o sangue jorrou farto. O Pedro Ortiz, da farmácia tratou de estancar a hemorragia com os poucos recursos que dispunha, e diante da gravidade do ferimento se apressou em encaminhá-lo ao hospital em Jales. O itinerário da pesca inverteu o rumo. Foi à Santa Casa de Misericórdia de Jales.
                                          O Nego já fora atendido e submetido a delicada cirurgia na palma da mão. Daí encaminhado à UTI devido a     farta perda de sangue, que o debilitara muito. Só poderia receber visitas no dia seguinte.
                                          Depois de três dias hospitalizado retornou à sua para para convalescer. A pescaria era definitivamente adiada.
                                          O Nego nunca mais se restabeleceu.
                                          O jovem funcionário da CEF retornou ao  trabalho após as férias e se ocupou novamente de seus afazeres que eram muitos, até que inesperadamente recebeu a notícia de que o Nego não estava nada bem e viera a São Paulo em busca de tratamento no Hospital Beneficiência Portuguesa.  Quando foi visitar o amigo, assustou-se com seu estado de saúde.  A  ferida na palma da mão não havia cicatrizado, e agora tinha uma cor roxo-azulada típica de uma avançada necrose, e o braço todo parecia    estar secando aos poucos como o galho ferido de uma frondosa árvore.  Aos poucos sua situação física agravou-se, passando a apresentar ainda sérias complicações renais. Os médicos concluíram que seria necessário imediatamente um transplante de rins, então começou outra busca incessante por um doador.
                                      Foi uma longa e sofrida tragédia para todos.
                                      Iniciaram –se as sessões de hemodiálise. O Nego tinha que se abster de ingerir líquidos e reclamava insistentemente de muita sede. Depois foi transferido para a Beneficiência Portuguesa à espera do transplante de rim.
                                      Inúmeras vezes vinham parentes do interior que se hospedavam em casas dos outros da capital a fim de visitarem o Nego, de maneira que constantemente estava o Valter levando alguém à Beneficiência Portuguêsa e fazendo mais uma visitinha ao parente doente, nessas ocasiões levava as revistas Veja e Playboy que serviam como passatempo ao doente. A princípio ele se empolgava e lia essas    revistas fazendo depois comentários a respeito das mesmas, depois aos poucos foi se aborrecendo e abandonando tanto a leitura das revistas como a pequena televisão colocada à cabeceira da cama.
                                     O lento e trágico sofrimento do Nego foi digno de um verdadeiro mártir. Desde o dia em que sofreu o acidente onde cortou a mão, que impediu a tão esperada pescaria e o levou à emergência da Santa Casa, nunca mais foi capaz de esboçar um sorriso ou de viver um momento de alegria. A princípio quando foi detectado o problema renal ele reclamava muito de não poder matar a sede, às vezes esbravejava, depois, já internado em definitivo foi aos poucos se resignando e aceitando o sofrimento com a serenidade e a paciência destinadas às pessoas realmente grandes diante das contrariedades.
                                     Pouco a pouco o Nego foi ficando mais pálido, embranquecendo, amarelando, a carne sumindo debaixo da pele; na verdade embora vivo, morrendo muito lentamente, com as forças se esvaindo pelos poros, pela boca, pelo olhar moribundo, até que finalmente numa noite fria uma diarréia súbita e fatal levou o amigo para a eternidade.

                                     Tão logo recebeu a notícia da morte do amigo deixou o trabalho e rumou para o Hospital Beneficiência Portuguesa onde estavam à sua espera a esposa do Nego, Elza e a sobrinha Ilda, que já haviam acertado os detalhes para o translado do corpo até Paranapuã. Deixado o corpo aos cuidados da funerária, rumaram a Paranapuã numa triste e longa viagem, onde chegaram por volta das 2:00hs da manhã.
                                       Imediatamente lhe veio à mente a imagem do dia da morte do Zé Ribeiro, com o povo ocupando a Avenida Ângelo Takaki à espera do corpo do companheiro e amigo. Quando chegaram a viúva, acompanhada da sobrinha Ilda, do irmão Dide e dos sobrinhos Valter e Marisete, todos correram a para a casa do Vô Cristovão em busca de notícias. Mas os que chegaram de São Paulo também não tinham notícias precisas. O corpo ficara à cargo da funerária, e a previsão era de chegar logo pela manhã. Então a vigília prosseguiu ao longo da madrugada.
                                       Os fatos se repetiam muitos anos depois. O   povo à espera do corpo do amigo ao longo da madrugada numa angústia que se estendia com a lentidão dos ponteiros.
                                       Amigos e parentes vigiavam ao longo da madrugada espalhados pela avenida em frente à residência do Vô Cristóvão, aqui e ali em pequenos grupos onde se ouviam os típicos rumores desses momentos de dor.
                                   -Coitado, tão jovem...
                                   -Tão amigo, tão querido de todos...
                                   -É mesmo uma fatalidade... Tanto que se lutou para que ele se recuperasse...Viu o esforço da Lourdes irmã dele, esposa do Hagapito ? Fez campanhas para encontrar um doador de rim. Procurou nas penitenciárias, anunciou nas rádios...
                                   -Mas parece que acabou encontrando um doador, não foi?
                                   -Sim, sim, encontrou um rim para ele, mas houve incompatibilidade. Que coisa! É o destino. É o destino!
                                   Tais conversas se avolumaram ao longo
da madrugada e finalmente o carro funerário chegou perto das 10:00 hs da manhã.

                                   Há uma diferença marcante entre a morte do Nego, e a do Prefeito Zé Ribeiro. Acontece que pouco a pouco a agonia do Nego fez-se uma morte anunciada, apesar das correntes de fé que se multiplicaram ao seu favor e das incontáveis orações que intercederam por ele, todos ali aguardavam a qualquer momento a nefasta notícia. O Zé Ribeiro foi-se como um facho de luz, um relâmpago, um susto. Porém é incontestável a demonstração de carinho e apreço que a população deu ao Nego quando de sua morte. Vale lembrar que a mesma dignidade demonstrada pela viúva do     prefeito foi exibida pela viúva do Nego, a tia Elza, que perdeu o  marido com um filho (Sandro) nos braços, e o fez homem merecedor do nosso maior respeito.
                                      Enquanto a tia Elza chorava a morte do   marido, abraçada às cunhadas que choravam a morte do irmão mais jovem, a pobre e sofrida vó Tereza junto com o vô Cristovão já não tinham lágrimas para lavar suas almas tão cheias de tristeza. Pouco  tempo mais viveram os dois velhinhos açoitados pela perda do         tesouro  tão amado, o filho mais jovem, o único varão entre os cinco irmãos. O velho parecia mais frágil, mais abatido; porem mais uma vez a morte não seguiu o caminho da lógica adiantando-se ao encontro da Vó Tereza. Menos de dois  meses depois o abatido e choramingoso velhinho foi juntar-se à companheira na eternidade
                    

                                      O velho Salvador Carrasco, já sexagenário, tinha o comportamento de um verdadeiro coronel dessas bandas; sempre de botas compridas, ora à cavalo, ora dirigindo seu jeep para cima e para baixo, fiscalizando tudo o que se passava na fazenda.
                                      Ainda nem sonhávamos com leite em saquinhos ou em caixinhas, então todo o povo do pequeno lugar fazia fila pela manhã na varanda da fazenda onde era vendido o leite.
                                      A maneira como esse leite era comercializado, até hoje me causa espanto. A velha senhora Carrasco, esposa do senhor Salvador, também sexagenária, com um canecão à mão, que era uma lata de óleo vegetal dessas da boca quadrada, com uma asa de lata, tirava o leite do latão e ia enchendo as vazilhas que lhe eram apresentadas. A medida era o canecão de um  litro. Assim ia enchendo garrafas de vidro, panelas, tijelas, e tantos outros vazilhames. Ocorre que a pobre senhora sofria do Mal de Alzeimer, e por exemplo, enquanto enchia uma dessas garrafas de vidro, devido a tremedeira, mais da metade do leite, lhe escorria pelas mãos, depois pelo cotovelo, e acabava dentro do latão que viera do curral, sendo depois servido novamente em outro vasilhame do seguinte na fila. Assim todos levavam o leite que passava pelo braço e pelo cotovelo da senhora Carrasco.
                                     Mas voltemos à história original; o velho Salvador, com quem o Miguelão mantinha uma interminável negociação para a limpeza dos aceros junto das cercas da fazenda. Um serviço irrealizável para o Miguelão sozinho, mas que ele acreditava ser capaz de executar. ( Uma dúzia de homens talvez levasse semanas nessa empreitada.) Assim passavam dias e dias comentando sobre o serviço, acertando detalhes, ajustando o preço, etc. Depois de tudo bem combinado, só faltava dar início à obra, então o Miguelão arrumava mil desculpas para adiar a empreita, por fim acabava se pondo de viagem para General Salgado e tudo ficava esquecido por um bom tempo. Mas enquanto duravam as negociações, todos os dias pela manhã, la ia o Miguelão com seu caneco de dois litros rumo à sede da fazenda, de onde trazia seu leite fresquinho, e de graça.
                                      O Oscar Tamássio era genro do velho Salvador Carrasco, e detinha a fama de ser, depois do João Morais, o sujeito mais mentiroso do local. Em certa ocasião o velho andava adoentado, bem mal, já que era diabético e hipertenso, além de sofrer outros pequenos males. Num domingo, bem cedo, chovia e fazia muito frio, enquanto os primeiros frequeses dos bares aqueciam a garganta com a primeira branquinha que substituia o café da manhã, o Oscar descia apressado pela avenida, segurando o chapéu na cabeça por causa do vento, em direção à sede da fazenda. Do outro lado da rua logo veio o convite de dentro do bar:
                                      _ O Oscar, vem tomar uma com a gente. E como ele continuava a andar cada vez mais apressado, o convite foi reforçado.
                                      _ Oscar, vem tomar uma branquinha e conta uma mentira para nós. O Oscar estancou o passo, olhou sério para dentro do bar e disparou severo:
                                      _ Cambada de cachaceiros irresponsáveis. O pobre do velho Carrasco acaba de morrer lá em Jales no hospital, e eu aqui todo molhado, apressado para receber o corpo lá na fazenda, e ainda querem que eu para prá beber ? E seguiu apressado avenida abaixo. Todos os que estavam no bar seguiram atrás. Um pouco mais abaixo na esquina seguinte, outro bar. As pessoas lá dentro viram o Oscar apressado, debaixo de chuva e logo atrás aquele grupo de homens acompanhando também apressado. Antes que alguém perguntasse, um do grupo já gritou:
                                      _O velho Carrasco morreu, vamos para lá. O grupo aumentou. No terceiro bar a mesma coisa. Pessoas que passavam pelas imediações também se juntaram e la foram rumo à sede da fazenda. O Oscar que se adiantara com relação ao restante das pessoas logo entrou pela porteira da fazenda, e dali a uns dois ou ter minutos aquele grupo de cerca de vinte e cinco homens apressados chegavam à mesma porteira. Quando fizeram a volta pelo quintal a adentraram pela varanda lá estava o velho Salvador Carrasco, sentado em sua cadeira de balanço, baforando calmamente o seu cigarro de palha. O Oscar deitado no chão rolava de tanto rir a apontava para o grupo desapontado e boquiaberto:
                                      _ Não me pediram para contar uma mentira ? Não pediram ?
                                      Ao lado da casa onde o menino vivia, ficava a venda do Joaquim Trindade, e em frente a venda onde hoje reside o Dorival Castilheri, e que já foi casa e estúdio do Dito Fotógrafo, residia a Dona Encarnacion com o marido, e velho Manuel Romeiro. Um velho e simpático casal de  espanhões já afastados do trabalho no sítio que agora era mantido pelos filhos. Dona Encarnacion tinha um papagaio muito tagarela, mas com uma singularidade bem típica da casa onde vivia. Como seus proprietários não falavam uma só palavra em português. Era praticante irredutível da  língua espanhola. Ficava o dia todo empoleirado na cumieira da casa e cumprimentava a todos que passavam, como seus donos.
                                       -Buenas tardes tio Marcello, como estas osted? E la tia Maria, vai biem. ( O vô Marcello seguia caminho sorrindo).
Dali a pouco era a vez do Salvador Carrasco.
                                       -Buenas tarde tio Salvador, que bela montaria tienes, que belo cabalo. O velho seguia sério montado em seu cavalo baio.
                                       De repente os cachorros se desentendiam e irritavam o papagaio que gritava.
                                        - Cambada de tios perros sem berguença. caja te. Depois a rua ficava em silêncio e ele se punha a cantar antigas canções espanholas.



                                       Quando o esperado primeiro filho, e primeiro neto da família nasceu, a pequena Paranapuã  era pacífica e sossegada tanto quanto (salvo raras exceções) sua população. Ainda não se tinha a menor idéia do que viria a ser o stress, assim como a ansiedade a depressão e o corre-corre dos nossos dias. Vez por outra alguém morria “de repente”, como se denominava os casos de morte súbita, não obstante jamais ninguém ter a exata informação da causa mortis dessas pessoas. Não havia nenhum médico na localidade e o atestado de óbito nesses casos era emitido à distância por um médico de Jales, sempre com o item causa da morte preenchido com os dizeres: Morte súbita. Provavelmente morriam mais pessoas por outros males desconhecidos da população que por problemas cardíacos. Assim era muito comum termos notícias de mortes por “nó na tripa”, “barriga d’água”, “mal de sete dias” e outras moléstias apelidadas com nomes pitorescos. Mas a tranqüilidade e o sossego eram na verdade  marcas registradas para a população. Existiam por ali pouquíssimos automóveis, sem energia elétrica, não havia sequer um aparelho de televisão e as notícias do Brasil e do mundo chegavam através de obsoletos aparelhos de rádio. E sequer essa pequena benesse do progresso fazia parte da casa onde o menino morava, banido pelos mandamentos da igreja que tinha seu uso como pecaminoso e transmissor de maus costumes e de imoralidade. Dessa forma só tomou maior contato com esse aparelho na casa dos avós maternos em Votuporanga onde um desses modelos bem grandes com uma antena que beirava toda a casa pairava imponente na sala do casarão em um suporte bem alto a mais de dois metros do chão. A mãe sempre narrava que uma única vez na vida vira seu pai (avô materno do menino) chorar. Foi em 1945, bem antes do menino vir ao mundo, quando o velho cansado chegou da labuta na roça e como de costume puxou uma cadeira para debaixo do rádio que ligou imediatamente ouvindo o locutor gritar repetidas vezes:
                                   - A guerra acabou! A guerra acabou!
                                   O velho avô imigrante, de descendência austríaca, que deixara os amigos e parentes na Itália, e que vivera através do rádio todos os horrores causados pela guerra, agora chorava diante  da tão esperada notícia.
                                      Agora era o ano de 1964, e o rádio enchia a pequena Paranapuã com as últimas notícias sobre o governo deposto e a vitoriosa revolução dos militares. Essa era a vez do vô Marcello ficar atento ao pé do rádio cheio de temores e apreensões sobre os acontecimentos.
                                      - É hora de se tomar cuidado com as coisas. Cuidado com quem se conversa, com o que se fala. Muito cuidado.
                                      O menino alheio aos problemas políticos do país apenas observava a preocupação dos adultos com a situação, já que estava envolto em mil outras preocupações. Acabava de ser promovido com mérito para o segundo ano no pequeno grupo escolar onde a Dona Cinyra dava aulas para as quatro séries do então primeiro grau e o golpe lhe rendeu um benefício inesperado: Uma semana inteira sem aula, até que as coisas se acalmassem segundo a professora. Assim pode se dedicar mais à fabricação de gaiolas e alçapões para o terror das coleirinhas e dos canários da terra muito abundantes por ali naquela época. Mas não era só isso; tão logo saia da cama e tomava o desjejum corria pelos carreadores de gado da fazenda dos Carrasco “fiscalizando” os ocos dos troncos onde pernoitavam os pelados filhotes de pássaro preto que uma vez empenados, seriam retirados do ninho e levados para casa onde eram submetidos ao costumeiro mingau de fubá, servido nos bicos dos filhotes com um palito de sorvete. A grande maioria dos filhotes morriam na “troca do papo”, quando  o alimento deixava de ir direto à barriga da pequena ave e passava a ser retida no papo. Talvez por erro na dosagem do alimento, ou em sua freqüência, a verdade é que às vezes de uma ninhada de quatro ou cinco filhotes nenhum sobrevivia. Não obstante, dali há alguns dias lá estava novamente uma nova ninhada para ser tratada com o indefectível mingau de fubá. A captura dos passarinhos exercia verdadeiro fascínio sobre o menino, e quando amadurecia o “capim margoso” as coleirinhas apareciam aos bandos por todos os lados, então estava absolutamente ocupado pelo dia todo e não raras vezes a fabricação de gaiolas adentrava pela noite e não era abandonada nem mesmo na hora de dormir. Enquanto esperava o sono quebrava a cabeça pensando em novos modelos de gaiolas com alçapões nas laterais e na parte superior, deixando pouca possibilidade de sair ileso e livre qualquer passarinho que ousasse pousar por ali.
                                       Mas o menino ainda muito jovem não tinha a perícia necessária para fabricar tais instrumentos de precisão, e nem dispunha de material nem de ferramentas adequadas. A parte de madeira das gaiolas era feita a partir de tábuas de caixões  que eram serradas com um velho serrote sem corte e perfuradas com pregos  12 X 12. Quase sempre esses pequenos e delicados pedaços de madeira acabavam por rachar quando eram perfurados ou pregados na montagem do esqueleto da gaiola. Então o menino se irritava e às vezes chorava, sendo logo consolado pela mãe. Outras vezes o irmão mais jovem se punha a “ajudar”, causando novamente grandes estragos.
                                       Agora quando ia para a cama não ficava mais à escuta da mãe contando histórias das Reinações de Narizinho para o irmão e a irmã mais novos, nem ouvia o choro do pequeno recém-nascido. Ficava em silêncio alheio a tudo tecendo na mente o cronograma para o dia seguinte.
                                       Então logo apareceu um novo problema nessa rotina de gaiolas e passarinhos. O menino precisava de dinheiro para comprar matéria prima, basicamente arame e prego. A princípio a mãe lhe fornecera o dinheiro mas logo passou a negar lhe tal patrocínio. Furtar pequenos trocados da mãe do pai ou da avó nem pensar. Já fizera isso, o que lhe rendera surras monumentais aplicadas pelo pai em nome da severa correção defendida pela tradição familiar e principalmente pela igreja sempre intransigente. Logo apareceu a solução: Foi fácil fabricar uma caixa de engraxar sapatos e comprar os equipamentos necessários, agora até com a ajuda financeira da família, e sair à luta.

                                       Nesses pequenos lugarejos habitados quase que exclusivamente por pessoas com quase nenhuma cultura, onde não chegavam os meios de comunicação, sendo que o mínimo de que se dispunha era quase sempre bloqueado pelo fanatismo religioso e pelos tabus sociais e familiares,  era muito freqüente personagens curiosos e pitorescos. Nesse contexto o Miguelão reinava absoluto dentro da família, sempre com suas trapalhadas, suas gritarias e os disparates com a obsessão de arranjar um casamento a qualquer preço e as intermináveis brigas com os membros da família. Além dele ainda existiam os impagáveis pedintes de esmolas, verdadeiros profissionais nessa tarefa de pedir ajuda ao próximo, se apresentando periodicamente a pé ou a cavalo com seus inseparáveis sacos brancos de farinha de trigo onde carregavam o produto da peregrinação. Alguns desses pedintes eram assíduos na residência do menino, tratados pela mãe como se fossem visitas aguardadas nos dias e horas estabelecidos, como os inúmeros mascates que vagavam por ali. Quando o pedinte era conhecido já tinha sua esmola aguardando sua passagem, como era o caso da dona Guilhermina (a mesma que o vô Marcelo quis casar com o Miguelão) que residia na vizinha Populina, cerca de 20 km de Paranapuã, e sempre no mesmo dia da semana desembarcava no primeiro ônibus e seguia direto para a casa da dona Cida onde era recebida como visita, com farto café com leite, pão com manteiga, e às vezes até um bolo ou uma bolachinha. Depois de lavar o rosto na bacia ao lado do poço e devorar o “breakfast”, saia pela rua afora batendo palmas de porta em porta pedindo esmolas até a hora do almoço quando retornava para almoçar deixando o saco com as prendas escondido atrás da porta da sala. Depois do almoço saia novamente retornando antes das quatro da tarde para recolher as esmolas da casa,  quase sempre arroz e feijão ou uma lata de óleo, e retornar no final da tarde para Populina.
                                        Quando o esmoleiro era desconhecido era sempre indagado se aceitava qualquer coisa, o que geralmente era aceito, mas haviam exceções como o caso dos portadores de deficiência física que se locomoviam com muletas, impossibilitados de carregar os sacos pesados, então só aceitavam esmolas em dinheiro. Ocorre que as donas de casa nem sempre dispunham de trocados para fazer esmolas, então aceitavam um pão com manteiga ou um prato de comida.

                                         Outra pedinte fixa de outra cidade era a dona Manuela, com um enorme papo do lado direito do pescoço e que seguia o mesmo método da dona Guilhermina com o saco branco às costas onde trazia o produto da coleta.
                                          Tinham ainda as figuras do próprio local, pedintes ou deficientes mentais como era o caso do casal Pedro Canequeiro e Chica Canequeira, ambos negros provavelmente filhos de escravos, que viviam num casebre na estrada boiadeira na mais absoluta pobreza. ( Vale lembrar que nessa época não haviam contribuições sociais de qualquer origem para idosos ou carentes). Ambos exibiam sempre a boca risonha sem nenhum dente, o que de certa forma atemorizava as crianças. O Pedro ganhou o apelido “Canequeiro” graças à mania que tinha de colocar cabos em latas vazias de óleo, margarina ou leite em pó, um trabalho muito mal feito, cheio de defeitos que vendia às donas de casa sempre dispostas a comprar a fim de lhe dar uma ajuda. A Chica Canequeira segundo diziam não tomava banho nunca, e usava sete vestidos longos de baiana, um  sobre o outro, ficando meses a fio com a mesma roupa. Trazia sempre pendurado ao pescoço até a cintura um enorme colar feito com canecas atadas pelo cabo, produtos de fabricação do marido. Eram testemunhas vivas de uma escravidão que não havia acabado; dois pobres e infelizes seres humano submetidos à miséria e à ignorância absoluta, servindo ora de terror às crianças pequenas com as ameaças das mães (-Olha a Chica Canequeira vem aí!), ora de chacota para os mais afoitos que os ridicularizavam. Era muito comum a criançada perseguir um desses pobres infelizes numa infernal algazarra e pequenas agressões, e nessas ocasiões uma das vítimas mais freqüentes era o “Bicharedo”.
                                         Bicharedo não era pedinte de esmolas, era um contínuo viajante, um caminheiro, sempre com seu saco às costas onde trazia todos os seus pertences, e as mães se valiam da figura grotesca, com longa barba e cabelo esgrenhado, as roupas rasgadas e muito encardidas, de pés no chão, amedrontando as crianças que lhes causavam
algum trabalho:
                                          - Cuidado, o Bicharedo vem aí e costuma carregar crianças pequenas no saco, principalmente aquelas que não obedecem às mães. Enquanto os mais pequenos se escondiam diante de sua passagem pela avenida afora, os mais crescidos o acompanhavam de uma certa distância com a costumeira gritaria:
                                - Bicharedo, Bicharedo, Bicharedo. Ao que o pobre velhote reagia com quase indiferença, caminhando avenida acima sempre cantarolando, e quase sempre uma velha canção religiosa, com sua voz rouca, quase sumida. Então em meio à criançada um mais afoito disparava o apelido que o indignava:
                                - O Colete Preto.
                                Então o Bicharedo emendava à mesma canção que falava de Nossa Senhora suplicando sua proteção, cantarolando sem perder o ritmo:
                                -Colete Preto é a puta que o pariu... E prosseguia com a cantiga em forma de reza.
                                Para a criançada era a senha para a algazarra se avolumar:
                                 - Colete Preto. Colete Preto. Colete Preto...
                                 Então o velhote reagia com violência, atacando a molecada com pedras e porretes, mas a perseguição continuava até que alguém interferisse dispersando a criançada, e fazendo o velho prosseguir em paz.
                                  Outra figura curiosa dessa época era o Cezarino, que possivelmente não portava nenhuma doença mental grave, mas dotado de extrema simplicidade, rapaz feito, de vinte e tantos anos, não tinha nenhum grande apego ao trabalho. Se vestia geralmente com uma camisa escura de manga longa, de óculos de sol bem escuros e um chapéu preto à moda Valdick Soriano, caminhava pelas largas e desertas avenidas sempre assobiando e cantarolando a mesma melodia:            
                                  - Fi ri ri fi (assobio) triste fim (canto), firiririfi triste fim, fiririririfi triste fim, triste fim, triste fim...
                                  Um belo dia o Cesarino surpreendeu a população. Apareceu repentinamente na casa da mãe com uma anãzinha de um metro de altura que adotara como “esposa”. Em Paranapuã não existia nenhum anão, e a maioria das crianças sequer os conhecia, daí a pequena senhora Cesarino se tornar alvo da curiosidade de todos. Depois vieram as explicações: O proprietário de um pequeno
um pequeno circo subitamente falecera na vizinha Populina, (o pai do compositor Constantino Mendes), deixando a viúva com vários filhos pequenos praticamente na miséria, juntamente com os “artistas”, entre eles a pequena anã que viera a se juntar como Cesarino. Mas esse amparo também foi efêmero já que o
mancebo não era capaz de se submeter ao trabalho, e repentinamente a donzela desapareceu da localidade.
                                   E o Cesarino continuou pelas ruas, sempre
assobiando: - Fi ri ri fi, triste fim, fi ri ri fi, triste fim, triste fim, triste fim...
                                    Quantos tipos curiosos, e queridos ocupantes  dessa pequena cidade nesse pequeno espaço de tempo. Tinha o João Parafuso, caboclo negro muito forte, saqueiro famoso (carregador de sacos de cereais para a carrocerias dos caminhões), mas que geralmente freqüentava os bares da cidade se embriagando e provocando   intermináveis rebuliços. Esses bares eram palco de inúmeros ’artistas’ famosos no lugar: O Boca Murcha (José Maria), os irmãos Bortolotti, o velho Elias e o filho Nelsão, o Zé Lagoa, que de certa feita bebeu demais e promovia um quebra-quebra no bar do Odair Trindade, diante da embriagues e da violência do freguês foi chamada a polícia, que era constituída de dois praças (Atervir e Wanderley) e de um velho jeep sem capota. Compareceu o Wanderley, que se deparou com o bêbado fazendo estrepolias e fazendo-se de valente. Sem pestanejar o representante da lei deu-lhe voz de prisão:
                                 -Teje preso Zé Lagoa.
                                 -Não teje.
                                 -Teje preso Zé Lagoa!
                                 -Não teje!
                                 Diante dessas recusas, o policial sacou a arma:
                                 -Teje preso Zé Lagoa! Gritou.
                                 - Ah! Intão tem que tejê. Respondeu o bêbado   estendo-lhe as mãos para ser algemado. Passou a noite no pequeno  xadres e no dia seguinte foi libertado para ir ao trabalho.

                                      Existiam ainda alguns tipos de transporte   bem pitorescos por ali. O táxi preferido da população era a charrete do Ameriquinho, que tinha como ponto ou estacionamento a     sombra de uma paineira enorme bem em frente à Casa Matos de cima, (depois Casa Lacerda), onde hoje é a praça da cidade. O      Ameriquinho levava famílias que desembarcava do ônibus vindo de Jales em visita a parentes nos sítios da vizinhança, levava as compras feitas por camponeses nos sábados à tarde, profissionais de saúde que iam em socorro de um ou outro morador adoentado.
                                      Depois, pouco a pouco foram aparecendo os automóveis, e o povo foi deixando os serviços da charrete. Por fim esse meio de transporte era utilizado apenas pelas meretrizes do único e pobre bordel da localidade.
                                      As senhoras então se escandalizavam quando passava o Ameriquinho levando-as com suas maquiagens carregadas e suas roupas escandalosas.
                                      Para os fretes mais simples eram solicitadas a carroça e a mula do Antonio Castilheri, que ia e vinha a todos os cantos do local levando as cargas mais inusitadas. Por vezes uma mudança daqui pra ali, outras vezes, galinhas, porcos, sacos de arroz, milho, madeira, material de construção, móveis,
e tudo o quanto pudesse ser levado sobre uma carroça. Porem dentre tudo aquilo que era transportado sobre essa carroça o mais interessante era o transporte de carne do gado abatido no matadouro até os açougues locais. Por volta das quatro ou cinco da tarde lá ia o Castilheri rumo ao matadouro onde o aguardavam o açougueiro e o responsável pela morte do animal. Amarravam a rês, abatiam-na, depois com uma manivela a içavam com a cabeça para baixo enquanto retiravam o couro e as vísceras, depois de pelado e limpo o animal era cortado ao meio do rabo até a cabeça, então a        carroça era colocada de ré sob as partes que eram descidas sobre ela. Uma vez acomodada a carne sobre a carroça, o carroceiro que participara do abate ia cuidar de lavar as mãos, os braços e rosto sujos de sangue. Enquanto isso a mula não esperava por ele. Sozinha punha-se a caminhar para fora do matadouro, depois
ganhava a estrada boiadeira e finalmente a avenida poeirenta. Por fim parava diante do açougue para a entrega. Às vezes após um longo tempo subia pela a avenida o Castilheri para descarregar o animal morto, que era desossado e colocado à venda no açougue.
                                      Depois vieram o Faíco e outros carroceiros, mas o Castilheri foi o precursor nesse meio de transporte.
                                      O Sílvio Beguelini era oveiro do lugar.Á   primeira vista supomos que o oveiro é um comprador de ovos, e às vezes de galinhas, mas ali essa era uma ocupação bem diferente disso. O Oveiro saía nas linhas pelo sítio à compra de ovos e galinhas, mas aos poucos por conveniência começou a carregar consigo algumas quinquinharias solicitadas pelas mulheres da roça. Eram carretéis de linha, agulhas, botões, zíperes, depois passaram a levar, meias, chinelos, fumo em corda, pequenos utensílios domésticos, pequenos brinquedos, batons, pó de arroz, enfim,uma infinidade de mercadorias que poderiam ser vendidas ou trocados por galinhas, ovos, pombos,  e até leitões.
                                       Dessa maneira, dia após dia, com chuva ou sol, lá ia o Silvio Oveiro em uma das seis linhas. Uma para cada dia da semana.
                                       O já velho Joaquim Franco fabricava balaios, cestas e outros utensílios de taboca. Era um artesão criado na natureza, trançando as tiras de taboca com esmero e total perfeição. Enquanto isso o Salvador Surdo, seu filho era especialista em fabricar tachos, panelas e canecas a partir de latas de óleo vazias.
                                        Mais abaixo, perto do campinho de bola, numa casa muito humilde. Vale aqui esclarecer o que era uma casa humilde naquela época, já que não existe hoje nada para se comparar. Eram quatro esteios de madeira fincados no chão apoiando as quatro paredes que eram feitas com tiras de coqueiro e cobertas por barro. Nesse caso o barro já havia se soltado das lascas de coqueiro, dando ao casebre um aspecto assustador. Alem disso pedaços do telhado    havia sido arrancado pelas intempéries e preenchido com papelões velhos. Na sala, quatro pedaços de taboca fincados no chão com uma tábua em cima. Era a mesa. Não tinha cadeiras. E na pequena cozinha duas ou tres panelas muito pretas e alguns canecos feitos de latas de óleo pendurados pelas madeiras das paredes. Ali morava o Velho Saturno pai do Pé de Pato, com sua esposa dona Ambrósia.
O velho vivia doente e quase nunca era visto, alem disso tinha um aspecto assustador; barbudo, muito magro, sem dentes. Todos pela redondeza diziam que virava lobisomem. A criançada fugia e se escondia assustada, principalmente porque dona Ambrósia aborrecida com a curiosidade das crianças afirmava solenemente que tudo era verdade, que nas noites de sexta-feira de lua cheia, o marido virava lobisomem e saía a meia noite à procura de sangue. A história era confirmada pelo filho, que em meio à molecada sempre alertava: -Cuidado com o meu pai!
                                           Ainda há um amigo do lugar com uma história bem peculiar. Ocorre que esse amigo é bravo, metido a valente, por isso vamos à história sem revelar o seu verdadeiro nome. Vamos  chama-lo de Neninho.
                                           O Neninho foi criado por ali, junto à criançada, mas nunca foi muito enturmado. Vivia meio calado meio distante, sempre observando mais do que participando. Tão logo alcançou seus dezesseis, dezessete anos o Neninho começou a gostar das biritas (bebida alcoólica), e pouco a pouco, bebendo cada vez mais, trabalhando cada vez menos, foi ficando por ali, pelos   bares, fazendo um serviçinho aqui outro ali e e levando a vida. Entretanto, apesar de andar sempre acompanhado de um copo, e fugir do trabalho ou qualquer outro compromisso, o Neninho era um rapaz de boa aparência, e despertava muito a atenção das garotas.
De certa feita uma bela moça, filha de um renomado sitiante passou a flertar com o Neninho. Mandar recadinhos, dirigir-lhe piscadelas, risinhos de canto de boca, até que o jovem mancebo entusiasmou-se e foi ter com ela. A moça lhe disse que até se simpatizava com ele, que era um belo rapaz, com uma conversa muito agradável, mas que não poderia lhe namorar, já que o pai jamais consentiria. A menos... O Neninho  entusiasmou-se. A menos...
A menos que deixasse de beber. E que arranjasse um trabalho sério.  Então... Quem sabe...

                                                 No mesmo instante o Neninho se encheu de entusiasmo. Jamais tivera uma namorada, e agora justo essa moça; linda, rica. Deixou de beber no mesmo instante. Na segunda feira pela manhã estava trabalhando firme numa loja do comércio.
                                          A notícia entrou em todos cantinhos da cidade. O Neninho parou de beber e esta trabalhando firme! No sábado encontrou-se com a moça na praça e o namoro começou.
O velho pai da jovem donzela, a princípio não deu muita importância, talvez achando que fosse apenas uma brincadeira. Ocorre que no sábado seguinte o neninho deixou o trabalho, tomou um banho perfumou-se e rumou para o sítio montado em sua bicicleta nova. Então o velho embraveceu de vez. O rapaz arranjou uma desculpa, ficou um pouquinho por ali e foi embora amedrontado. Durante a semana seguinte foi encorajado por todos, e no sábado seguinte lá estava ele de novo a bordo de sua monark. O velho esbravejou outra vez, mas agora a moça o socorreu. O rapaz iria ficar para o jantar já que fora convidado por ela. Desse dia em diante aos poucos foi dominando a resistência do velho, e o namoro enfim começou prá valer.
                                            O velho ruminava ali com os seus botões:
-E agora, o que eu faço? Esse não é o homem que minha filha precisa para casar. Logo vai começar a beber outra vez, vai parar de trabalhar, e depois? E se já tiver dois ou três filhos prá criar?  O velho era só preocupação. Então teve uma idéia genial.
                                             Quando o Neninho chegou para namorar no sábado seguinte, o velho foi encontrá-lo no portão:
                                             -Ah! Neninho, meu futuro genro, eu tenho sido injusto com você, que tem demonstrado ser um bom rapaz. Sabe hoje compreendi que não posso ser teu inimigo. Vamos ser amigos. Encosta tua bicicleta aí na beira da cerca e sobe na garupa do meu cavalo. Vamos dar um pulo na cidade, comemorar.
                                              Entraram num bar e se embriagaram os dois até o amanhecer.  Perdeu a namorada. Nunca mais o Neninho voltou ao sítio, nem para buscar a bicicleta.

                                              Com a ausência do prefeito José Ribeiro após três anos de mandato, assumiu o vice Luis Reina que finalizou o quadriênio. Com a grande comoção provocada pela morte trágica do prefeito, Reina parece não ter se encorajado para grandes obras ou para uma maior carreira na política, tendo se afastado da vida pública ao completar o mandato do amigo, e voltando a se dedicar ao comércio de tecidos como proprietário da Casa Pereira.  Alem disso teve sua atuação um tanto ofuscada pela acirrada disputa pela sua sucessão entre Ulisses Costa, o Licinho, e Afonso Carrasco.
                                               Licinho, embora não fosse formado em odontologia era o dentista da cidade. Era comum nessas pequenas cidades um “prático dentista”  executar tratamento dentário para toda a população, assim como o farmacêutico, que era apenas proprietário da farmácia, sem jamais haver freqüentado qualquer curso de farmácia ser o médico da cidade, diagnosticando doenças e prescrevendo medicamentos e não raras vezes executando pequenas cirurgias. O Licinho tratava da boca de todos na cidade, e como dispunha de poucos recursos para tratar a imensidão de dentes podres que apareciam frequentemente o boticão era seu instrumento preferido, arrancando sem piedade um após outro todos os dentes dos indefesos pacientes, afinal era oportuno arrancar um dente diante da impossibilidade de  trata-lo. Não haviam instrumentos para tratamento de canal, nem para restauração de dentes muito danificados, ficando o tratamento limitado à obturação e à extração com as colocações de próteses na forma de pivôs, pontes e dentaduras. Licinho alem de dentista ainda exercia a co-profissão de protético, fazendo moldes e fabricando as próteses.
                                                Desde muito cedo os dentes foram um sério problema na vida do menino. Após a primeira dentição, os dentes de leite foram substituídos de maneira disforme, com os novos dentes se sobrepondo uns aos outros, se colocando tortos na boca, e com os dentes frontais superiores lançados ligeiramente para a frente. Alem disso logo começaram as cáries e a terrível “dor de dente”. 

                                            A mãe logo tinha a solução para o problema do menino:
                                            Vamos te levar lá no Licinho. Ele arranca todos esses dentes e te faz duas dentaduras bem branquinhas, bem bonitas, vai ficar uma beleza! Veja o Aderbal ( um jovem membro da igreja com cerca de vinte anos), tá trabalhando lá no banco com suas dentaduras novas. Um sorriso lindo. Ficou tão bem de dentaduras. O menino dava de ombros, colocava um pequeno algodão com remédio na cárie dolorida e ia brincar.
                                            O outro candidato a ocupar a cadeira do Zé Ribeiro na Prefeitura era o Afonso Carrasco, agricultor e pecuarista, um homem da roça. A família Carrasco sob o domínio do velho Salvador Carrasco  com seus diversos filhos era proprietária de uma boa fazenda nas cercanias da pequena cidade. Afonso que já era casado e pai de família, homem muito trabalhador alem de muito religioso sendo o capelão local responsável pela reza dos terços e demais solenidades da igreja na ausência do padre, que vinha de Jales só uma vez por mês a fim de rezar a missa.
                                             O menino era crente, e ouvia horrores a respeito da igreja católica, de seus rituais, de seus santos e de seus condutores. Dessa forma embora nada entendesse de política era mais simpatizante à candidatura do Licinho, que pelo menos não carregava essa rejeição, embora fosse rotulado e com certa razão pelos opositores de cachaceiro, por ser simpatizante de uma boa biritinha. Claro que os adversários políticos se valiam dessa falha do candidato e propagavam que este vivia bêbado pelos bares, caído pelas calçadas com as calças encharcadas de urina. Como poderia um pinguço desses ser o prefeito da cidade ? O Licinho por sua vez se defendia dizendo que isso era pura calúnia, e no pouco que podia atacar o Afonso Carrasco, argumentava que este era homem sem cultura, criado na roça, no cabo da enxada, e por isso incapaz de ser o prefeito. A verdade é que essas pessoas engatinhavam na política dentro do sistema que a repressão da ditadura podia oferecer, onde era quase que proibido ser oposição à direita militarista, chegando ao cúmulo de ambos os candidatos concorrem pelo mesmo partido, com o Afonso concorrendo pela “Arena 1” e o Licinho pela “Arena 2”, sem que nenhum ousasse ingressar no partido de oposição, o MDB.

                                                A campanha foi acirradíssima, com  calorosas e inesquecíveis discussões, com os comícios muito prestigiados pela população que cada vez mais queria usufruir da chance de   poder eleger o seu prefeito, e na apuração dos votos deu Licinho com uma vitória por quase 400 votos de vantagem. O que é bem considerável se levarmos em conta um eleitorado de aproximadamente 2.000 eleitores. Licinho voltou de Jales, comarca do município nos braços do  povo, como há quatro anos voltara o saudoso e inesquecível Zé Ribeiro.

                                              Paranapuã se preparava para eleger o seu terceiro prefeito e algumas novidades se apresentava. Primeiro uma coincidência: Mais um Zé era candidato. José Ferreira do Carmo (que viria a ser prefeito por (2 ou 3?) legislaturas), também muito querido pela população e seu opositor Miltom Pedrosa, que audaciava se candidatar pela oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), numa época e num local onde isso era muito temeroso já que as pessoas ali tinham muito medo do sistema imposto pelos militares o que tornava mais difícil a conquista de votos para o candidato.

                                         A família era conservadora e medrosa, e se encolhia frente ao que representava a ditadura no destino e no desenrolar de nossas vidas. Embora não se envolvesse diretamente com a política, se inclinava nitidamente para a direita, optando pelo candidato da Arena; talvez não porque esse candidato fosse melhor que aquele, ou apresentasse melhores condições de conduzir o município, mas apenas pelo fato do outro fazer oposição ao sistema que era temido por quase todos.
                                          O jovem cidadão quase adolescente, no qual aos poucos se transformava o menino, gostava muito do candidato da Arena, o Zé Ferreira, que era homem muito popular na localidade, cantador de modas de viola e amigo de todo mundo, mas também trazia no peito um pouco do inconformismo que lentamente brotava no seio de uma geração inteira. Pouco a pouco aprendia o significado daquilo que acontecia com o país onde vivíamos e a rebeldia própria da idade se fazia cada vez mais presente, orientando as escolhas que aos poucos deixavam de ser conduzidas pelos outros e passavam a ser mais pessoais. Por isso era simpatizante do MDB, embora soubesse que o candidato não tinha a menor chance de surpreender nas urnas, das quais sequer podia ainda participar.
                                           O vô Marcello não votava, já que era imigrante espanhol ainda não naturalizado (o que ocorreria mais tarde), entretanto apesar da discrição e do medo da truculência dos ditadores vez por outra manifestava sua opinião sobre a política local aconselhando os netos:
                                            - Meninos, nem falem em Manda Brasa (MDB), é muito perigoso. Não se sabe o que pode acontecer. Se alguém perguntar digam que torcem pelo Zé Ferreira, da Arena. (Vale lembrar que veio para o Brasil com o pai e os irmãos numa época em que a Espanha era oprimida por sistema semelhante comandado pelo generalíssimo Franco). Mas quando o vô se irritava com os netos lá na máquina de arroz, saia dando vassouradas, correndo atrás dos meninos e gritando:
                                            -Cambada de Manda Brasa sem vergonha... Os meninos rolavam de tanto rir.

                                         Com acentuada tranqüilidade o Zé Ferreira ganhou esta eleição. Primeiro porque era melhor aceito pelos eleitores, depois porque pouca gente àquela altura se declarava publicamente partidário do MDB. Vale lembrar que a direita divulgava abertamente que o MDB era ligado ao partido comunista, banido do quadro político na época.                                      
                                               O irmão mais novo era a própria sombra do menino acompanhando-o a todos os lugares, desde a escola onde iam juntos e freqüentavam a mesma classe, passando pelas caçadas de passarinhos, pelos banhos nos pequenos riachos e pelos jogos de bolinha de vidro, até os cultos de jovens, onde agora iam cada vez menos dando sinais de estarem pouco a pouco deixando a igreja dos pais. Os colegas já eram uma mistura de crentes e não crentes, estes sem um consentimento muito explícito do pai e da mãe, mas eram já aceitos como colegas das crianças. Geralmente por volta do meio dia a mãe vinha à porta anunciar a hora do almoço. Logo a criançada se punha ao redor da mesa, e do lado de fora olhando sorrateiramente pela janela, dois olhos grandes em meio a um rosto sujo muito cheio de sardas espreitavam a algazarra dos colegas à mesa. Era o Malagó, que ficara por alí à espera do convite para o almoço. Logo a mãe fazia a pergunta esperada:
                                           -Tito, você já almoçou ? O menino muito envergonhado gaguejava:
                                           - Na, na, na não, mas pode deixar, eu na, na, na, não quero.
                                           Era preparado um prato bem grande, que era devorado lá na varanda. Não sobrava nada.
                                           O Tito (Malagó) vinha do sítio bem cedo para a escola, e quando saía ficava por ali brincando com as demais crianças só retornando à tarde ao Arraial dos Cabritos onde morava.
                                           Às vezes vinha acompanhado da irmã mais nova, também muito tímida e com todo exagerado acanhamento típico das crianças muito humildes, sempre procurando se esconder diante das pessoas e desviando os olhos quase sempre para o chão quando encaravam alguém.

                                        Felizmente as crianças não tinham ali  nenhum preconceito social, e quando se juntavam no joguinho de bola não haviam ricos nem pobres, nem pretos nem brancos. Para dizer a verdade, sequer haviam pessoas realmente ricas na sociedade da pequena cidade, mas apenas pobres, mais pobres e menos pobres. Pobres meninos pobres, sequer tinham uma boa bola de futebol, sequer tinham uma velha bicicleta ou um relógio no pulso.                                
                                       Aos poucos o acanhado Malagó foi se juntando à criançada, e logo lá estava ele todas as tardes correndo atrás da bola com os colegas.
                                       Essa criançada vinha crescendo depressa e agora tinham 10, 12 e até 14 anos. Gozavam os últimos tempos de liberdade para brincarem à vontade antes de ingressarem na idade que os levariam ao trabalho. No gramado em frente à máquina de arroz era o campinho onde se juntavam os irmãos Valter e Valdeir, Nilson e Nelson brinquinho, Dorival e Dair Castilheiri, Maurício Beguelini, Zé do Salvador surdo, Claudinho do Hagapito, Lázaro pé de pato, Feioso, Jurandir, Bombinha, os Roncolatto, os Carrasco, e muitos outros. O Gerson Ribeiro tinha a mesma faixa etária, mas não era muito adepto do jogo de bola; preferia os malabarismos em cima de sua bicicleta pelas ruas e calçadas da vizinhança. Quem aparecia vez por outra era sua irmã, a  Sandrinha (aquela que esperava a boneca do pai), que reivindicava uma vaga de goleira para um dos lados. Naquela época mulher não jogava futebol, e todos olhavam   estarrecidos a menina no gol em meio à garotada.
                                        Pouco a pouco o joguinho de bola evoluiu bastante. Havia ali uma grande fartura  de crianças craques de bola. Foi aparecendo um timinho aqui, outro ali, então a criançada do outro lado da cidade se reunia e formava mais um time para     se defrontar com este. De repente existia o Guarany, que era formado pela criançada que jogava em frente à máquina de arroz. O   Vila Rica, formado pela criançada da família dos Carrasco mais alguns amigos, e do outro lado da cidade tinha o time do Cacaio,   e outros eram formados aqui e ali. Então a garotada se organizou, promoveu um torneio no campinho ao lado do ginásio, sendo que
logo o Dide (Osmar Gabriel), que sonhava ser árbitro de futebol se ofereceu para apitar as partidas.  Promoveram rifas, angariaram fundos e adquiriram jogos de camisas, bolas, etc. Arranjaram um mimeógrafo e imprimiram convites personalizados às famílias da cidade. No domingo pela manhã o redor do campinho estava lotado dos curiosos espectadores. O torneio era um sucesso, e a criançada não decepcionou. Logo    apareceu a torcida do Vila Rica (que tinha o futebol mais bonito), do Guarany (que tinha o futebol mais fortee embora em menor número e entusiasmo, todas as equipes tinha a sua torcida. O torneio foi denominado José Ferreira do Carmo, em homenagem ao prefeito da cidade, que tinha inclusive seu filho, de codinome “Careca” como atleta de uma das equipes. Quando chegou a grande final o pequeno espaço ao redor do campo não comportava a quantidade de pessoas interessadas no evento, que contou inclusive com a presença do prefeito dando o pontapé inicial. Foi um jogo memorável, contando inclusive com brigas de torcida, quando o finado Nego, (Ângelo Sanches Dom), trocou muitos palavrões com o Luiz Xarope. No final a força do futebol-raça do Guarany se sobrepôs ao   refinado toque de bola do Vila Rica, e no apito final a vitória foi do Guarany por dois gols a zero. O curioso dessa partida é o dilema vivido pelo técnico do Guarany, que contava com dez titulares absolutos e mais dois que se obrigava a colocar no time de qualquer maneira. Um era seu próprio irmão Natinha, que não aceitava a reserva de maneira nenhuma, o outro era o cunhado Tuta, que também não admitia o banco. A solução foi escalar o time com os dez titulares e colocar o  Nata no primeiro tempo e o Tuta no segundo tempo.  Mas havia outro problema. O Tuta era muito ruim de bola e conseguia inclusive atrapalhar os próprios companheiros em campo. Então mais uma vez o técnico precisou ser criativo. Chamou o Tuta durante o intervalo e foi bem claro: -Quero você marcando o goleiro do Vila Rica (Vanildo, que viria a ser depois goleiro do Paranapuã EC), mesmo quando nosso time não estiver no ataque. Pelo amor de Deus, marque apenas o goleiro deles. (Não havia impedimento). Final: dois a zero para o Guarany, com dois gols do Tuta. Era a glória.

            O GLORIOSO GUARANY FC EM 1975
            De pé: LÁZARO (Pé de Pato), PADILHA, CLAUDINHO (do Hagapito), PELISSONI 
            (Piciti) e NENEZÃO (Bombinha).
            Agachados: ADEMIR (Tuta), CARECA, VALTER CAFFER (técnico e dono do time
            e ARLINDINHO.



                                         A política nacional que era comandada pelos militares se encheu de ridículos casuísmos, e num desses golpes o Licinho viu fugir de suas mãos uma eleição que ganhara limpamente e com grande preferência dos eleitores. Acontece que foi estabelecido    como forma de garantir a vitória dos candidatos da Arena o voto partidário. Assim o prefeito eleito não era o que obtivesse o maior número de votos, mas aquele que ganhasse dentro do partido com o maior número de votos. Assim o Licinho foi candidato único de seu partido, enquanto a oposição apresentou três candidatos. Na apuração a soma dos votos dos três superou por muito pouco a votação obtida pelo Licinho. E a prefeitura foi parar inesperadamente nas mãos do professor Rubens Ferreira Costa, que jamais teve grande afinidade com a política e ao final de seu mandato deixou a cidade radicando-se em outro lugar e abandonando de vez a política.
                                        

                                         Numa dessas eleições, novamente o pitoresco e o inesperado estiveram presentes ditando as regras e colocando diante das pessoas o inusitado. Lembra do Malagó? Aquele menino pobre e sardento que vinha do Arraial do Cabritos jogar bola com a garotada em frente a máquina de arroz?  Esse era um menino muito especial. Não desfrutara de nenhum benefício que pudesse ser oferecido por um viver onde faltava tudo, desde educação, conforto, e até comida. Mas o Malagó era um dono de uma esperteza camuflada sob as sardas da pele queimada e castigada pelo sól, e de umavontade muito grande de sobreviver a todos esses infortúnios. Muito bem; o  pequeno Malagó crescera diante de todas as dificuldades impostas a um menino meio sem esperanças. Fora um adolescente muito      irresponsável, envolvendo-se em diversas confusões, como bebedeiras, brigas e roubo de galinhas. Transformou-se em um alcoólatra  inveterado, desses que todos julgam caso perdido. Pois bem o Malagó foi buscar ajuda nos Alcoólicos Anônimos, e achou.        Recuperou-se da bebida e candidatou-se a vereador. O resultado?  Bem, o Malagó teve uma estrondosa votação e tornou-se um dos   respeitáveis edis do município.


A População Total do Município era de 3.632 de habitantes, de acordo com o Censo Demográfico do IBGE (2000).

Sua Área é de 139,51 km² representando 0.0562% do Estado,
0.0151% da Região e 0.0016% de todo o território brasileiro.
Seu IDH é de 0.775 segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano/PNUD (2000)

Ano de instalação 1964    
Microrregião: Jales
Mesorregião: São José do Rio Preto
Altitude da Sede: 474 m
Distância da sede à Capital: 559.0031Km


PARANAPUÃ
SÃO PAULO
HISTÓRICO
Paulo Guilherme Ferraz, grande proprietário na região, promoveu o loteamento de suas terras, para facilitar o povoamento e fundação de um patrimônio, concretizado por João Batista Schiavon, que adquiriu
uma gleba de 56 alqueires.
Os fundadores denominaram o povoado, inicialmente, de Entrerios, por se localizar entre os dois rios Grande e Paraná. Todavia, optaram pelo Topônimo indígena Paranapuã que, segundo alguns autores,
significa rio grande das abelhas.
Entre os fatores marcantes no desenvolvimento de Paranapuã, destacam-se a ascenção econômica de Jales, de recente fundação e a atuação de companhias de colonização no noroeste de São Paulo, que atraíram povoadores. Outro fator foi a implantação da estrada de ligação com Jales e conseqüente acesso à Estrada de Ferro Araraquara, possibilitando o escoamento dos produtos cultivados e desenvolvimento
da lavoura.
GENTÍLICO: PARANAPUENSE
FORMAÇÃO ADMINISTRATIVA
Distrito criado com a denominação de Paranapuã, por Lei Estadual nº 5285, de 18 de fevereiro de 1959, no Município de Dolcinópolis.
Em divisão territorial datada de 01-VII-1960, o Distrito de Paranapuã permanece no Município de Dolcinópolis.
Elevado à categoria de município com a denominação de Paranapuã, por Lei no 8092, de 28 de fevereiro de 1964, desmembrado de Dolcinópolis, com Sede no antigo Distrito de Paranapuã. Constituído de 2 Distritos: Paranapuã e Mesópolis. Sua instalação verificou-se no dia 21 de março de 1965.
Em divisão territorial datada de 31-XII-1968, o Município de Paranapuã é constituído de 2 Distritos: Paranapuã e Mesópolis.
Lei Estadual no 7644, de 30 de dezembro de 1991, desmembra do Município de Paranapuã o Distrito de Mesópolis.
Em divisão territorial datada de 01-VI-1995, o município é constituído do Distritos Sede.
Assim permanecendo em divisão territorial datada de 15-VII-1999.
Fonte IBGE
                              




                                                    PALAVRA DO AUTOR









                                       A morte do Prefeito José Ribeiro foi um dos fatos mais marcantes de minha infância. Depois ao longo dos anos que convivi com sua família, vi crescer meu respeito e minha admiração pela Sra. Olivina, que enfrentou essa triste realidade de uma maneira sóbria e equilibrada, fazendo de cada filho digno e merecedor da memória do pai e das mais elevadas honrarias. Essa narrativa sob a ótica de uma simples criança que assistiu a tudo sem ser notada ou percebida pelos adultos, me pareceu bastante rica e oportuna.Afinal toda a família do Prefeito era criança como eu. Nesse particular a criança absorve de maneira diferente a realidade; já que os adultos sofrem esse impacto por inteiro, que a princípio os atingem com maior intensidade, entretanto também superam mais rapidamente, por terem maior dicernimento do ocorrido. Por outro lado, a criança, a princípio não entende muito bem o que está acontecendo, e depois só muito lentamente pode absorver por inteiro tamanha tragédia.
                                     Simultaneamente o Neno era um ídolo daquele menino ao volante do FENEMÊ, que já sonhava desde a mais tenra idade em voar alto, e ganhar o mundo. Ali há uma homenagem das mais sagradas e sinceras aos caminhoneiros do lugar, que se sucederam em minha vida de maneira fiel e constante, desde o Neno, o princípio da saga, depois o Cristóvão, o Pio (grande amigo, quase parente), o Miltinho e o Chiquinho, (esses parentes absolutos do meu coração), e tantos outros que foram meus companheiros no campinho de bola e depois entregaram as

suas vidas às estradas intermináveis.
                                               Então, como não falar da família Trindade? Que alem de estar constantemente comigo ao longo de toda a vida, desde a infância ainda se tornou a minha própria família? O convívio com essa gente tão encantadora por certo moldou   muito do meu viver.
                                               A disputa política em Paranapuã sempre foi uma novela à parte. As pessoas se envolvem com tamanha paixão e irreverência capaz de levar a pequena cidade da paz absoluta ao mais exaltado estado de beligerância alimentado pelas fofocas e disse me disse.
                                               Aquele menino era partidário incondicional do primeiro prefeito, depois na segunda disputa, simpatizava mais com o Licinho (Ulisses Costa), possivelmente devido significar de certa forma oposição, e pelas divergências religiosas da família com o outro candidato. Quando veio a terceira eleição, já tinha um pouco de informação política, e sabia o que significava o golpe militar. Por isso era simpatizante do MDB. Mas como ser contrário do Zé Ferreira? Cantador de modas de viola e muito simpático a todos no local? A verdade é que o Zé tornou-se mais uma lenda viva em Paranapuã, e deve oportunamente ter a sua história narrada em todos os detalhes. Grande Prefeito. Grande Amigo.
                                          Na transição, quando o Zé Ferreira passava a Prefeitura ao Professor Rubens, saí de Paranapuã a fim de  engajar o quadro de funcionários da Caixa Econômica Federal em Santo André-SP, e minhas percepções mudaram de endereço, de maneira que me abstenho de comentar as eleições e mandatos do Professor Rubens e daqueles que o sucederam, alguns até grandes amigos de de Ginásio ou do Colégio Comercial, como é o caso do Massami e Dr. João Alberto Robles, ou de negócios como era o Alpheu Polarini.
                                           Quando voltei a ser eleitor em Paranapuã, em 1988 estava em franca campanha dos candidatos a eleição que levou novamente o amigo José Ferreira à Prefeitura.

Engajei-me de certa forma na disputa mas não me envolvi inteiramente, porem alegrou-me muito a vitória do Zé. Deixei de narrar detalhes dessa legislatura e das que a antecederam não por desinteresse ou desmerecimento de qualquer pessoa, mas devido à minha ausência da localidade.
                                          A história do Caju é completamente diferente. Esse era menino, meu contemporâneo, e seu sucesso, assimcomo o do companheiro Malagó, me encheram de júbilo e de esperança. Não poderia deixar de dedicar todo meu apreço a uma figura tão ímpar e tão importante para todos nós, como é o caso do , jovem pobre e negro, que ousou galgar o comando de um povo que nem sempre o acolheu como um ser capaz de tal façanha. Meus aplausos e meu efusivo abraço aos companheiros Malagó e Caju, grande seres humanos e merecedores de honrarias Paranapuãenses.
                                            Os tipos curiosos sempre foram típicos por ali, todas pessoas muito queridas em minha infância, que ora me  divertindo, ora me amedrontando, eram parte do meu viver pequenino.
                                            Ah! Paranapuã da minha infância. Dos meus verdes anos. Da minha primeira alegria e de minha primeira dor. Dos risos e das lágrimas. Dos passarinhos, das gaiolas, dos alçapões, dos estilingues. Do roubo de laranjas, do joquinho de bola, da pracinha da Matriz, do cinema do Alfredo, do Alto-Falante, dos circos, das touradas, das modas de viola, das serestas.
                                             Ah! Paranapuã da minha infância.
                                             Meu primeiro amor.




6 comentários:

  1. AH QUE SAUDADES DA NOSSA VELHA E QUERIDA PARANAPUÃ , VENDO A FOTO DO GUARANY FC LENBREI-ME DE TODOS,E DE TDAS AS PECULIARIDADES DE CADA UM,PARABENS VALTER VC CONSEGUIU TRANSMITIR A AURA E A PUREZA DOS MORADORES DAQUELA ÉPOCA.

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  2. gracias, please me ajude a divulgar e preencher com coisas ainda melhores .bjs.

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  3. a frase- ( TEJE PRESO ZÉ LAGOA....)
    ( NÃO TEJE PRESO..........)
    me acompanha ate hoje, sempre que vejo um policial abordar algum bêbado,me recordo do policial sr.Atelvir e do pobre zé lagoa.

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  4. a ultima vez que tive noticias do policial sr. Atelvir, ele estava residindo na vizinha Populina , sua filha Rita havia se casado e era maê de um garotinho,e o nosso policial estava portador do mal de alzaimer.

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  5. o jose ribeiro podia ta vivo ainda pk o prefeito dotor antonio nao esta fazendo nada aqui entao porisso que eu queria que o jose ribeiro tava vivo para veh que ela fas alguma cois a

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  6. Fiquei emocionada ao ver as narrações históricas de Paranapuã e mais ainda quando foi mencionado o nome da minha mãe Cynira, professora na década de 60. Parabéns pelo blog. Estranhei não ter citações do nome do meu pai Victor Ferreira Vitolo que foi Oficial do Registro Civil, e o primeiro Presidente da Câmara Municipal na história de Paranapuã. Marcia Regina Vitolo

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